A cantora Irah Caldeira é figura carimbada em festas populares de Pernambuco, como o Carnaval e o São João. No palco, aos 55 anos, ela canta, dança, não perde o fôlego e pula com o público. É assim há mais de 20 anos. Fora da ribalta, no entanto, essa mineira de Timóteo-MG, que parou de estudar aos 17 anos para casar, sentia falta de uma formação mais completa. Em 2013, decidiu se dar um “presente”: prestou vestibular para Educação Física e passou. Nos 4 anos do curso, nunca foi reprovada em nenhuma disciplina. Nesta entrevista, concedida ao repórter Gabriel Dias, Irah lembra das dificuldades e prazeres de voltar à sala de aula três décadas depois, os desafios de conciliar faculdade e trabalho, e reflete sobre a importância da educação em qualquer momento da vida.
Jornal do Commercio: Após vinte anos dedicados à música, você decidiu começar uma faculdade. Como se deu isso?
Irah Caldeira: Quando estava com 49 anos, eu queria me dar algo de presente no aniversário dos 50. Em relação à música, já tinha conquistado muito, então, naquele momento, busquei algo para mim mesma, para a mulher. Casei muito cedo e o sonho de estudar ficou de lado. Eu tinha curiosidade de como era uma faculdade. Me perguntava como seria a convivência com pessoas tão mais jovens do que eu, como seria aprender algo diferente do meu dia a dia. No fundo, eu queria resgatar a menina que não conseguiu estudar para cuidar da família e trabalhava para sustentar os filhos.
JC: Sentiu algum medo?
Irah: Não. O que eu tinha de obrigação, de educar filho, de ter estabilidade, de gravar disco, já tinha feito. Voltar a estudar era o presente que eu daria para aquela menina que começou a namorar aos 15 e casou aos 17 e que teve vários sonhos interrompidos. Não era uma dívida de obrigação, mas uma dívida por gratidão às coisas que, no tempo que eu deveria ter feito, não consegui fazer.
JC: E como foi o processo de se preparar para voltar à sala de aula?
Irah: Na época, eu estava namorando e ele disse: “O quê? isso vai atrapalhar sua carreira! Você vai estudar de que horas?”. Daí eu pensei: “A partir da hora que eu me proponha, eu tenho que dar conta”. E foi assim. Várias vezes, eu chegava do aeroporto e ia direto para a faculdade.
JC: Além do namorado, mais alguém disse que não daria certo?
Irah: Meus filhos apoiaram, mas teve uma amiga que disse: “Você é doida, nessa idade ir caçar estudar! Ainda mais Educação Física, que não tem nada a ver com a sua vida”. Mas quem ia estudar era eu. Então, se desse errado ou tivesse que parar pela metade, eu resolveria. Também teve uma amiga cantora que disse que tentou conciliar o trabalho com uma faculdade e não conseguiu. Aí pensei: “Pois vou me formar”. E me formei!
JC: Por que Educação Física?
Irah: Justamente porque eu queria dar um presente para a Irah e não para a Irah Caldeira. Se fosse estudar Música, por exemplo, seria em benefício da cantora. Pensei que Educação Física era algo que eu iria usufruir em mim mesma, que acrescentaria ao meu dia a dia.
JC: O vestibular foi difícil?
Irah: Eu pensei que não passaria. Fiquei pensando: “Imagina esse monte de menino jovem, que acabou de sair do colégio, estão com o assunto fresquinho na cabeça”. Mas quando minha filha foi ver o resultado e me disse que eu havia passado, foi uma alegria muito grande. Nunca fui reprovada em uma disciplina. Me formei em oito períodos, e ainda influenciei minha filha, que tinha 25 anos, à época, a voltar a estudar.
JC: Qual a principal dificuldade de uma pessoa que volta à sala de aula depois de tanto tempo sem estudar?
Irah: Olha, eu lembro que, no primeiro ano, na cadeira de Anatomia, a gente ia para o laboratório e, se você perdia uma aula, já ficava bem difícil de acompanhar. Um dia, tive um show, perdi uma aula e acabei tirando uma nota muito baixa na prova. Naquele momento, me senti péssima porque, para mim, não era o caso de uma aluna que se deu mal porque não estudou. Pensava que eu era uma pessoa que estava fora do espaço, uma mulher que estava velha e que "puxa, vida, se eu tivesse feito isso quando tinha 18 anos, não teria essa dificuldade". Era um sentimento ruim de incapacidade, de frustração.
JC: Mas você terminou a faculdade. Como mudou esse pensamento?
Irah: Fui para casa chorando naquele dia, mas parei e disse para mim mesma que iria conseguir. Sabia que teria que penar muito mais do que eu imaginava. Então fui estudar. Criei um compromisso muito maior do que as outras pessoas. Enquanto um colega fazia 4, eu fazia 8. Enquanto um prestava atenção 10, eu prestava 50. E consegui recuperar a nota baixa.
JC: Nunca pensou em desistir?
Irah: Quanto mais o tempo passasse, mais difícil seria. Ainda mais no Brasil, onde o idoso é tão desrespeitado.
JC: Você sentiu esse desrespeito quando chegou à faculdade?
Irah: Tive uma vantagem, porque, naquele momento, entrava a cantora. Tenho que admitir que ser artista me beneficiou. De certa forma, por ser conhecida, o pessoal respeitava.
JC: A faculdade é muito complicada para quem tem que trabalhar?
Irah: Sim, por conta do cansaço, do sono, da falta de tempo para estudar. Ficava pensando: “Meu Deus, queria ter a oportunidade que aqueles meninos tinham com a idade deles, mas com a cabeça de hoje”. Olhava e pensava como eles estavam perdendo tempo [em não se dedicar muito aos estudos]. Mas talvez, se eu tivesse a idade deles, faria igualzinho.
JC: Qual o benefício de estudar na sua idade?
Irah: A maturidade. Tudo o que eu aprendi, tenho certeza, foi de uma forma muito mais intensa do que se eu tivesse feito há 30 anos. Nesse sentido da responsabilidade, do comprometimento, o tempo é aliado.
JC: Sofreu um choque geracional?
Irah: Acho que a faculdade me libertou de um monte de coisa. A gente aprende muito com eles. Inclusive a desaprender um monte de coisa que a gente achava certo.
JC: Por exemplo?
Irah: Por exemplo, que uma mulher mais velha não pode pegar um rapazinho mais novo. E lá a gente pegava.
JC: Namorou com um colega de turma, Irah?
Irah: Não, mas fiquei com um. Isso é só para você entender que é algo que jamais teria acontecido se não fosse a convivência com aquela turma ali. Porque a gente aprende que ‘aquela mulher tem que namorar com pessoas daquela idade’. E quando estamos ali com eles, não tem isso. A demora é você se situar, mas, com o passar do tempo, fica mais fácil. Você vai conquistando o respeito da turma mostrando que tem o mesmo objetivo que eles. Naquele momento, tudo o que estava sendo ensinado eu tinha que aprender igual, independente se o meu colega tinha 17 e eu 50. Isso te move.
JC: Você não aprendeu apenas o assunto dado pelos professores, né?
Irah: É porque você começa a observar que não é porque tem mais experiência que o que você faz é o certo, existem outras possibilidades. E você deve abrir sua mente para essas novas possibilidades, que, às vezes, o jovem vê com mais naturalidade.
JC: Depois de quatro anos, o que sentiu ao receber o diploma?
Irah: Tive um sentimento de muita admiração por mim mesma. Pensei que estava de parabéns por ter concluído algo que me propus a fazer. Me senti realizada, muito incrível.
JC: É semelhante ao que você sente no palco?
Irah: É algo diferente. Porque o palco é uma experiência que se repete, embora toda vez eu fique feliz. Mas ali foi um momento único. Parecido com quando eu lancei o meu primeiro CD, talvez. Porque tem um monte de sonho, de expectativa, de entrega. Imagina, trinta anos depois, eu estou ali numa faculdade, com 53 anos, e concluindo um curso de Educação Física, que é repleto de jovens.
JC: O que você diria para uma pessoa que já criou filho, se dedicou à família e ao trabalho, mas que ainda tem vontade de estudar?
Irah: É uma oportunidade muito grande que você dá a você mesmo. A educação está ligada ao conhecimento, mas também ao autoconhecimento. Existe uma realização pessoal, a oportunidade de vivenciar coisas diferentes. É o prazer de estudar, independente de quantos anos essa pessoa tenha, porque cada vez que você lê uma coisa, que você vê uma aula, que você fala com um aluno, até as conversas na cantina, tudo te enriquece muito.
JC: Nós sabemos onde a música te levou, mas e a educação?
Irah: Acho que esse é um processo que ainda não findou. Talvez eu ainda volte para a faculdade para fazer Nutrição. Mas acho que vejo onde a educação me leva a cada dia, sabe? Porque quando você desperta para a educação no geral, consegue aprender de outras formas. A educação pode estar ligada à sua forma de viver. Eu aprendo quando leio um jornal, por exemplo. No meu caso, fora tudo que eu aprendi, passei a ir treinar sozinha na academia, tenho uma desenvoltura física melhor, ainda tem os relacionamentos que eu cultivei. Quando a gente se propõe a se relacionar com idades diferentes, com profissões diferentes, com gêneros diferentes, com classes sociais diferentes, é muito bom.
JC: O que você espera do futuro?
Irah: Que eu continue aprendendo, acho que tenho mais coisa para aprender. Não tenho muito o que ensinar. Mas aprender? Ave Maria, eu quero todo dia!