Adoção de crianças mais velhas é prova de amor sem barreiras

Abrigos estão lotados de meninos e meninas com idades acima de 8 anos. Vencer o preconceito da adoção tardia é o desafio para quem está hoje à espera de um lar
Ciara Carvalho
Publicado em 06/05/2017 às 17:49
Abrigos estão lotados de meninos e meninas com idades acima de 8 anos. Vencer o preconceito da adoção tardia é o desafio para quem está hoje à espera de um lar Foto: Foto: Luiz Pessoa/JC Imagem


"Eu queria ter 12 anos.” Na primeira vez que viu Yasmim, Fernando ouviu essa frase e não conseguiu esquecê-la. Era uma festa no abrigo e, apesar de alegre, a menina trazia uma inquietação. Com 17 anos, o desejo verbalizado era, em outras palavras, uma tentativa de voltar no tempo e, quem sabe assim, aumentar suas chances de ser adotada. No vídeo, Willams disparou: “A esperança é a última que morre”. Dessa vez, foi Viviane quem se comoveu. O garoto, com os mesmos 17 anos, ainda se agarrava ao sonho de encontrar uma família. Yasmim e Willams não se conhecem, mas protagonizam uma história rara, inspiradora e, principalmente, urgente. Os abrigos de Pernambuco e do Brasil estão lotados de crianças e jovens com idades acima de 8 anos. Eles representam quase 70% do universo que hoje espera por um lar. Falar de futuro e esperança para esses meninos e meninas é, antes de tudo, vencer preconceitos. A adoção tardia ainda é o maior deles.

Não tem sido fácil, mas o jogo começa a virar. Há dez anos, narrativas como as de Yasmim e Willams seriam improváveis de acontecer. Uma revolução silenciosa vem sendo costurada na última década para dar a esses meninos mais velhos um rosto, uma fala, um projeto de vida. Um protagonismo que os tire da invisibilidade. “Hoje todo o nosso esforço é para isso. Para que as crianças maiores tenham chances reais de serem adotadas”, diz o juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude do Recife, Élio Braz. E, sim, a história está mudando.

O caso de Willams é exemplar. Ele foi um dos protagonistas do vídeo de divulgação do Projeto Adote um torcedor, uma parceria do juizado com o Sport Clube do Recife, que uniu a paixão pelo futebol e o desejo de ter uma família. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, a engenheira Viviane Medeiros do Amaral Nogueira, 45 anos, não teve dúvida quando viu Willams no vídeo: tinha achado seu filho. Tanto que nem conseguiu chegar até o fim da gravação. Chorando, viu e reviu a imagem do jovem várias vezes. Ele era o primeiro a falar. “Não há como explicar. Eu olhei e tive a certeza que era por ele que estávamos esperando”, conta Viviane. No próximo domingo, completa um ano que Willams mudou de Estado e ganhou um pai, uma mãe, dois irmãos e uma vida nova. A engenheira conta que o encontro só foi possível porque ela e o marido “abriram a mente” para considerar a possibilidade de adotar um filho mais velho. “As reuniões do Grupo de Apoio à Adoção foram fundamentais para nos fazer refletir. Eu já estava mais disposta a adotar um adolescente, mas meu marido ainda resistia. Assim que vimos Willams, ele disse: ‘Vamos buscá-lo’”. Quando todo o processo de adoção foi concluído, o jovem já havia completado 18 anos.

 

O mesmo talvez aconteça com Yasmim. Desde os 14 anos que ela vive em abrigos, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. Seu destino começou a mudar, como se diz no futebol, aos 45 do segundo tempo. Em setembro próximo, Yasmim completa 18 anos. Teria que sair do abrigo. Enfrentar sozinha “o mundo lá fora”. Foi quando Fernando, Maria de Lourdes, Ana e Gustavo entraram na história. A família já tinha o desejo de adotar uma criança e viu na aflição da jovem (refletida no anseio de ser mais nova) o empurrão que faltava para dar esse passo. “A Yasmim tocou o coração do meu pai, quando disse que queria ter 12 anos”, conta Ana Karine Barbosa, 22, que já era voluntária do abrigo. A decisão pegou até Yasmim de surpresa. Com o processo já em curso, ela ainda custa a acreditar que, enfim, vai ter uma família. “Fico com medo de que eles mudem de ideia, que desistam de mim”, diz, sem esconder, mesmo por trás da timidez, a felicidade de ser acolhida.

Maria de Lourdes Barbosa, 53, a mãe, diz que o segredo é ter o coração aberto para amar sem distinção. “Ela já é nossa filha. A história que ela carrega não nos preocupa. Porque o que importa é a que vamos construir a partir de agora.” Ana, a irmã e a responsável por levar o resto da família para visitar o abrigo, diz que, antes de julgar, as pessoas deveriam conhecer a realidade dos jovens que crescem nessas instituições. “A visão de fora é muito negativa. Principalmente por causa da idade. Mas o que essas meninas querem é uma chance, uma oportunidade.” A família já faz planos. E não descarta uma nova adoção. “Quem sabe, não trazemos mais um irmão para ela?”, sugere o pai, Fernando.

UM, DOIS, TRÊS...

Já fazia tempo que a médica Ana Celma Araújo, 43, e o empresário Marcelo Amaral, 44, queriam adotar uma criança. Tentaram à brasileira (quando a mãe biológica entrega o bebê diretamente à nova família, sem passar pelo Cadastro Nacional de Adoção). Uma, duas vezes. Enxoval, expectativa, frustração. O casal decidiu então entrar no cadastro e não demorou para chegar a ligação. Os irmãos João, Anthony e Ruan tinham, na época, 3, 6 e 7 anos. Viviam em um abrigo, em Palmares, na Mata Sul do Estado, e buscavam uma família que aceitasse adotar os três. O susto foi grande. Mas não deu tempo nem de pensar. A resposta veio na bucha: “sim”.

 

Três anos se passaram desde que a rotina ganhou mais bagunça, mais barulho e muito mais amor. “O número até hoje assusta. Mas não há mais como imaginar a vida sem eles. A história da casa agora é essa”, diz Marcelo. Contada pelas crianças, fica ainda mais bonita. “Nem me importo em ganhar presente nem em passear. O que mais gosto é ficar em casa, com meus irmãos e meus pais”, responde Anthony, o do meio, hoje com 9 anos, diante da pergunta sobre o que lhe deixa mais feliz. Ana Celma fala das dificuldades naturais do período de adaptação, ressaltando que cada conquista é comemorada como uma vitória de todos. O déficit de aprendizagem, as reações mais explosivas, tudo foi sendo enfrentado e, aos poucos, superado. Ruan, 10, lembra que odiava ler. “Aí, minha mãe me deu uns livros, me levou na livraria, eu fui gostando, gostando...” Hoje ele é o maior leitor da casa. “Talvez eu seja ator, quando crescer”, diz.

A decisão de adotar um grupo de irmãos, como fez Marcelo e Ana, ainda encontra forte resistência entre as famílias à procura de um filho. É mais um obstáculo no caminho para juntar pais e filhos. Quase 70% dos pretendentes afirmam, ao se cadastrar, que não aceitam adotar mais de uma criança. Novamente, expectativa e realidade trilham caminhos opostos. Mais de 60% das crianças à espera de adoção possuem irmãos. Muitas preferem, inclusive, deixar de ser adotada a ficar longe do parente. Para o jornalista Paulo Floro, 32, e o marido, Sérgio Costa Floro, foi mais fácil. Já tinham em mente adotar duas crianças. A chegada das irmãs Alice, 7, e Aline, 5, era desejada, inclusive, desde a compra da casa, com quintal e jardim pensando nos futuros filhos.

“Desde o início, quando pensamos em adotar, a ideia era que fossem duas crianças. Para que elas tivessem companhia”, conta Floro. O desafio de educar em dobro, eles vão enfrentando no dia a dia. O fato de ser uma família com dois pais foi sendo conversado com as crianças, naturalmente, à medida que as perguntas iam surgindo. “Acho que essa diversidade de famílias será muito importante para as futuras gerações. Elas vão crescer com menos preconceito. Conhecendo as diferenças dentro de casa”, avalia Sérgio. Hoje é simples. Floro é papai. Sérgio é painho. E ai de alguém na família se confundir e trocar os nomes de cada um. “Elas ficam bravas. Corrigem na hora.” Assim como nos caminhos da adoção, Alice e Aline estão aprendendo, desde cedo e em casa, que a palavra preconceito não rima com amor.

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adoção adoção tardia Infância Cadastro Nacional de Adoção (CNA) preconceito
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