O estereótipo do usuário de crack remete a pessoas pobres e maltrapilhas vagando sem rumo pelas ruas. O universo de consumo da droga, em boa parte dos casos, é o dos becos e vielas das periferias, além de vias dos grandes centros. Ou seja, o flagelo consome, preferencialmente, a base mais vulnerável da pirâmide social. O conhecido poder destrutivo da droga, no entanto, avança em um terreno novo e sobre vítimas improváveis. Já se registram, na Polícia Militar de Pernambuco, casos em que os responsáveis pelo enfrentamento direto ao tráfico terminam virando presas da droga.
O assunto é tabu na corporação. A PM confirma o problema, mas não fornece números de quantos casos de dependência já foram identificados. “A maior dificuldade ainda é o consumo de álcool, mas o envolvimento de militares com cocaína e, principalmente, crack, existe”, explica a coronel Valdenise Salvador, que coordena o Centro de Assistência Social (CAS) da Polícia Militar. É para o Núcleo de Apoio ao Dependente Químico (Nadeq) da corporação que são encaminhados os que, no limite do desespero, conseguiram pedir ajuda. Atualmente, 32 militares são atendidos no local, entre dependentes de álcool e de substâncias ilícitas.
“Eu tinha uma vida tranquila no batalhão e nas ruas, até que comecei a ter problemas em casa e arrumei amizades safadas. Quando vi, estava usando a droga. Era um uso recreativo, mas que, mais à frente, me levou a faltar o serviço. Terminei escanteado da corporação”, diz um militar que, após chegar ao fundo do poço, resolveu se tratar.
Ele relata que passou dez anos na corda bamba, entre representar a lei, de um lado, e infringi-la, do outro. “Eu não deixava que os traficantes com quem convivia cometessem certos crimes. Já paguei dívidas de usuários que conhecia, só para que não fossem mortos”.
Outra história triste é a da PM que, após uma separação, afundou-se no vício, passando a comprometer sua atividade profissional e sua vida doméstica. Transtornado por não aguentar mais vê-la na situação de vulnerabilidade, e sem ver perspectiva de mudança, o filho da militar cometeu suicídio. “Hoje ela está livre do uso, mas o trauma ficou para sempre”, comenta a coronel.
Mesmo sendo, de acordo com a PM, um percentual ainda pequeno no universo dos 19 mil homens e mulheres da corporação, o uso de derivados da pasta-base da cocaína por parte da força de segurança traz à tona a pergunta óbvia: o que leva à escuridão da dependência química pessoas encarregadas de defender a lei e combater o tráfico?
“O policial tem uma função de alto risco, lida diariamente com a violência, morte e situações estressantes. Isso, em um primeiro momento, traz sintomas mais leves, como ansiedade, irritabilidade e dificuldade para dormir. Muitas vezes, os casos vão se agravando e ele pode procurar alívio em outras substâncias. Geralmente, começa com o álcool e, daí, pode evoluir para as drogas ilícitas”, explica o médico e perito criminal Paulo Gustavo Xavier, do Núcleo de Pesquisas e Avaliação Comportamental em Grupos de Risco (Nupac), da UFPE.
Ele cita uma pesquisa, realizada entre PMs do Rio de Janeiro, em 2013, em que 53% dos militares admitiram dormir mal, 47% alegaram se sentir sempre agitados e 39% disseram estar frequentemente tristes. Não há levantamento semelhante com relação à Polícia de Pernambuco, mas, segundo ele, as situações são parecidas. “Essa transição para a substância ilícita não acontece da noite para o dia: é resultado de um processo onde os problemas se acumulam”.
Para o presidente da Associação Nacional dos Praças (Anaspra), Elisandro Lotin, o fator cultural também é um peso a mais sobre os ombros do policial, o que contribui para oportunizar eventuais mergulhos na dependência. “Temos que acabar com a cultura do herói, de que o policial é um super-homem. Ele acaba se sentindo assim e não vê os problemas do dia a dia”, explica o sargento da PM de Santa Catarina. “O problema não é só de Pernambuco: no Brasil inteiro nossos policiais estão ficando cada vez mais doentes”, completa.
Segundo Paulo Gustavo Xavier, do Nupac, é cientificamente comprovado que o acesso fácil a entorpecentes potencializa o eventual uso. Já que o policial lida, frequentemente, com drogas – em operações e apreensões –, esse seria mais um agravante. E como a maior concentração dos 109 quilos de derivados da pasta-base apreendidos no Estado em 2017 está no Grande Recife, é justamente nessa área que se concentram os casos. “No interior, especificamente no Sertão, esse envolvimento não existe. Lá, o problema maior é o álcool”, diz a coronel Valdenise Salvador.
O militar que ilustra a foto da matéria diz estar respondendo bem ao tratamento contra a dependência. “Desativei os gatilhos. Já não bebo, não fumo, não uso mais nada. Quero seguir limpo. Se não fosse o tratamento e a minha fé, eu estaria morto ou excluído da corporação”.