Falta de moradia: um flagelo que só faz crescer

Contam-se aos milhares os que não têm uma casa para morar na Região Metropolitana do Recife. Um déficit que nem o maior programa habitacional do País, o Minha Casa Minha Vida, conseguiu resolver. Série de reportagens Soluções Urbanas mostra que, sem o dinheiro do governo federal, as prefeituras terão que encontrar novas estratégias para garantir habitação de qualidade
Ciara Carvalho
Publicado em 22/09/2019 às 7:05
Contam-se aos milhares os que não têm uma casa para morar na Região Metropolitana do Recife. Um déficit que nem o maior programa habitacional do País, o Minha Casa Minha Vida, conseguiu resolver. Série de reportagens Soluções Urbanas mostra que, sem o dinheiro do governo federal, as prefeituras terão que encontrar novas estratégias para garantir habitação de qualidade Foto: Foto: Leo Motta/JC Imagem


Os barracos de madeira, fincados no Capibaribe, dão para um pequeno pátio improvisado. É o cortiço da vergonha. Chega-se lá por um beco estreito. Cada canto abriga um pedaço da família. Solange, a matriarca, é irmã de Sineide, mãe de Taynara, cunhada de Maria das Graças. Com maridos/filhos/sobrinhos/netos, somam 15 pessoas, espremidas em quatro palafitas. Por três vezes, já viveram o pesadelo de ver o fogo consumir as tábuas dos casebres da Comunidade Roque Santeiro, no bairro dos Coelhos, região central do Recife. Ali, vive-se de espera. Faz décadas. Depois do clamor de mais um incêndio, prometeram que todos ganhariam um apartamento. Não ganharam. Nem há esperança de ganhar. “São quase 30 anos aqui dentro. Esqueceram da gente”, diz Solange Maria Lagos, 56 anos. A sensação de abandono se traduz em números concretos. Levantamento feito pelo Jornal do Commercio revela que a oferta de moradia popular na capital caiu, drasticamente, ao longo dos últimos 19 anos. Situação que só tende a piorar. Os recursos que jorravam do maior programa habitacional do País, o Minha Casa Minha Vida (MCMV), começaram a minguar e, agora, escassearam de vez, sobretudo para os mais pobres. Sem o aporte massivo do governo federal, a produção de unidades de interesse social exigirá das gestões municipais soluções múltiplas e a busca por novas fontes de financiamento. Porque é na porta das prefeituras que a população vai bater pedindo o que lhe é de direito: uma casa digna para morar.

Sem respostas concretas, o problema tem recrudescido a olhos vistos. Os altos e alagados não só da capital, mas de todas as cidades da Região Metropolitana, são o nervo exposto da falta de uma política pública de habitação. As palafitas proliferam, amontoadas no vazio deixado pela ausência de urbanização e de investimento. Nos morros, o somatório dessas lacunas deságuam em medo, insegurança e, em sua face mais extrema, mortes. O tamanho do déficit habitacional no Recife impressiona: 71 mil unidades. É quase metade de toda a carência de moradia da Região Metropolitana. Em contrapartida, em quase duas décadas, a prefeitura da capital conseguiu entregar pouco mais de dez mil unidades habitacionais. Com base em dados oficiais, solicitados às gestões municipais desde o ano de 2001, o JC traçou uma linha do tempo que mostra o quanto a oferta de moradia no Recife vem encolhendo com o passar dos anos.

De 2001 a 2004, na primeira gestão do prefeito João Paulo, foram entregues 2.045 unidades habitacionais. O número cresceu no segundo mandato: 2.644 residências. A administração seguinte, do prefeito João da Costa (de 2009 a 2012), foi recordista em quantidade de habitações construídas: 3.019 novas moradias, entre casas e apartamentos. A curva de crescimento, no entanto, foi interrompida nos anos seguintes. De 2013 a 2016, na primeira gestão do prefeito Geraldo Julio, as unidades entregues à população caíram a menos da metade do período anterior: 1.331 unidades. E, em quase três anos da atual gestão, a prefeitura só conseguiu entregar até agora 1.032 residências.

Somados, os quase oito anos de Geraldo Julio não chegam sequer à oferta de unidades habitacionais oferecida apenas na gestão de João da Costa. A queda na produção de novas moradias populares é agravada pelo atraso na conclusão de residenciais que viraram verdadeiros esqueletos urbanos. O Habitacional Vila Brasil I, na Ilha Joana Bezerra, região central do Recife, é o símbolo maior desse apagão. A obra se arrasta há quase dez anos. Deveria levar dignidade aos que vivem nas palafitas das áreas centrais da cidade. Mais de 100 famílias seriam beneficiadas. Sem prazo nem para retomada da construção, resta aos moradores contemplar de seus barracos o monumento ao desperdício do dinheiro público.

ESQUECERAM OS MAIS POBRES

Mesmo quando a fotografia sai do plano local para o federal o retrato é desanimador. O desempenho do Minha Casa Minha Vida no Grande Recife se revelou muito abaixo do esperado para os que mais precisam. Apesar de concentrar quase 50% do déficit habitacional do Estado, a Região Metropolitana recebeu menos de 25% das moradias contratadas pelo programa em Pernambuco nas faixas 1 e 1,5, justamente a que atende a parcela mais pobre da população. Entre as residências efetivamente entregues, esse percentual foi ainda menor. Ao longo dos dez anos do programa, foram pouco mais de dez mil unidades da faixa 1 e 1,5 construídas na RMR, menos de 18% de toda a oferta destinada ao Estado para essa faixa de renda. No Recife, o cenário é mais desolador. Menos de 400 unidades foram entregues em uma década. Considerando que 92% do déficit habitacional no Brasil é formado pelo público beneficiário da faixa 1 e 1,5 (aquele que ganha até três salários mínimos), na prática, significa dizer que no Grande Recife ficou de fora do programa quem mais precisava de subsídios para conseguir realizar o sonho da casa própria.

“Recife e outros municípios da RMR perderam a oportunidade de aproveitar o tempo áureo dos recursos do MCMV, quando eles eram mais abundantes. As gestões não conseguiram articular os segmentos das construtoras, das entidades civis, para que esse dinheiro pudesse ser acessado em favor dos mais pobres. O MCMV no Grande Recife ficou voltado para a classe média, dentro das faixas comerciais do programa”, afirma a coordenadora da ONG Habitat para Humanidade, Socorro Leite. Ela lembra que a moradia é uma das garantias fundamentais para uma cidade mais justa, mas avalia que esse direito está longe de ser prioridade.

Na avaliação do arquiteto e urbanista Geraldo Marinho, a ausência de criatividade dos gestores na hora de apontar soluções tem contribuído para agravar o problema. “O Recife é praticamente omisso em políticas públicas de habitação há muito tempo. Faltou ousadia para construir novos referenciais. É essencial favorecer a oferta de habitação nas áreas centrais, onde há disponibilidade de espaço, acervo construído subutilizado e condições excelentes de oferta de serviços e infraestrutura”, defende Marinho. O entrave, como sempre, são os preços especulativos dessas áreas. É quando, na opinião do urbanista, os gestores precisam agir.

Questionado sobre a queda no volume de entrega de novas unidades habitacionais no Recife, o secretário de Planejamento da capital, Jorge Vieira, afirmou que os investimentos na área foram prejudicados pela crise econômica enfrentada pelo Brasil, a partir de 2014. “Além do cenário extremamente adverso, desde 2016, o governo federal deixou de priorizar ações voltadas à habitação de interesse social. Para se ter uma ideia, atualmente há 16 habitacionais do Programa Minha Casa Minha Vida com obras paradas no Recife, à espera de recursos”, destacou Jorge Vieira.

AMEAÇA REAL

Basta olhar a geografia da Região Metropolitana para acrescentar um ingrediente trágico à falta de ação do poder público. As duas cidades mais populosas da RMR – Recife e Jaboatão dos Guararapes – figuram entre as seis com maior número de moradores em áreas de risco do País. Nos cálculos da Prefeitura do Recife, mais de 60% de seu território são cobertos por áreas de morro, onde vive um terço da população, cerca 500 mil pessoas. O cenário se repete em Jaboatão do Guararapes. Pelas contas da gestão, quase 40% da população atual do município ocupam áreas de encostas, ou seja, cerca de 300 mil pessoas. Não é só morar mal. É conviver com a ameaça constante de morrer.

Moradores da RMR, Leidiane e Cláudio não se conhecem. Ambos tiveram suas vidas determinadas pela tragédia de não ter onde morar. Leidiane da Silva, 24, perdeu o filho quando faltavam dois dias para a criança completar o primeiro ano de vida. Há dois anos, Mikael escorreu por um buraco no piso da palafita, no Beco do Sururu, no Pina, Zona Sul do Recife. Quando a mãe se deu conta, o corpo do menino já estava boiando no mangue. A dor de Cláudio Gomes, 50, é mais recente. Em junho deste ano, ele enterrou duas netas, Bianca, 3, e Beatriz, 11 meses, após o deslizamento de uma barreira em Camaragibe, que também matou outras cinco pessoas de sua família. A perda solitária de Leidiane se soma ao sofrimento coletivo, estampado nas manchetes de jornais, de Cláudio. Só este ano, foram 23 vidas soterradas por desabamentos no Grande Recife. Apesar da comoção pontual que sempre geram, as mortes seguem recorrentes. Sem oferta de moradia digna para a população, elas só mudam de endereço.

  

O tamanho do déficit habitacional

Brasil - 7,7 milhões de unidades
Pernambuco - 285.251 unidades
RMR - 130.142 unidades
Recife - 71.160 unidades

A cara do déficit no Brasil
91,7% do déficit habitacional no Brasil são de pessoas que ganham até três salários mínimos. Esse universo mais pobre precisa de 7,1 milhões de unidades habitacionais

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