O ano era 2000. A Prefeitura do Recife inaugurava a Ponte Joaquim Cardozo, ligando os bairros dos Coelhos ao Coque, na região central. A promessa era de que a obra seria revolucionária para o desenvolvimento daquele pedaço da cidade. No discurso oficial, a investida iria transformar, principalmente, o trecho da Rua Imperial, com seus galpões fechados, casas degradadas e entorno de habitações precárias. Na prática, passados quase 20 anos, o cenário de abandono permanece praticamente o mesmo. A Rua Imperial continua sendo o que sempre foi: uma possibilidade de requalificação urbana que nunca vingou. Agora a área é novamente alvo da gestão municipal quando o assunto é criar novos espaços de moradia de interesse social. O problema é que para isso de fato acontecer, o Recife precisa de marcos regulatórios e de instrumentos urbanísticos que nunca foram regulamentados. Com os repasses federais em queda, essas ferramentas hoje são peças fundamentais para atacar o problema do déficit habitacional. Isso porque, além de orientar o crescimento das cidades de forma inclusiva, cria novas fontes de financiamento para habitação popular. É assim que São Paulo está conseguindo ampliar a oferta de moradia na maior metrópole da América Latina. Uma experiência que, guardadas as devidas proporções, tem muito a nos ensinar.
Aprovado em 2014, o Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo tem sido um aliado da gestão municipal na produção de unidades de habitação de interesse social. Em cinco anos de vigência, aumentou de 9% para 13% a área da capital destinada à moradia de pessoas de baixa renda. O número de empreendimentos populares saltou de 2 mil, em 2015, para 25 mil em 2018. Um estudo feito pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil de São Paulo (IAB/SP) apontou a criação de 60 mil novas habitações sociais licenciadas em Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), como são classificadas as regiões destinadas à construção de moradias para os mais pobres. O plano trouxe também a possibilidade de notificação de imóveis ociosos, que estão vazios ou subutilizados e podem ter o IPTU mais caro, caso assim permaneçam. Foram notificadas 1.388 construções da cidade, de acordo com o mapeamento do IAB. É uma forma de o município forçar, pelo bolso, o proprietário a dar um uso social para o imóvel.
É tudo o que o Recife e outras cidades da Região Metropolitana precisam fazer, mas ainda não conseguem, sempre com a justificativa da falta de regulamentação dos instrumentos adequados. Não à toa a legislação urbanística aprovada em São Paulo em 2014 foi, segundo a própria Prefeitura do Recife, uma inspiração para a revisão do Plano Diretor da capital, que está na Câmara dos Vereadores para ser votado. “Essa discussão é muito oportuna para o município porque estamos em um momento de revisão dos marcos regulatórios urbanísticos da cidade. E não é só o Plano Diretor. Já há um debate técnico para apresentar uma proposta de revisão da Lei de Parcelamento e de Uso e Ocupação do Solo, além da regulamentação de instrumentos urbanísticos que podem contribuir para uma efetiva política habitacional de interesse social”, afirma o secretário de Planejamento Urbano do Recife, Antônio Alexandre. Segundo ele, também está em revisão o Plano Municipal de Habitação de Interesse Social, que vem sendo discutido no Conselho da Cidade.
Para se ter uma ideia da demora na aplicação concreta dos instrumentos urbanísticos no Recife, a regulamentação da outorga onerosa do direito de construir, uma das ferramentas mais importantes para financiar a produção de moradia popular, está atrasada em quase dez anos. Deveria ter acontecido em 2010, mas até hoje não virou realidade. O instrumento é uma compensação financeira que os construtores pagam à prefeitura por erguer prédios acima do limite permitido. O impacto não é só urbanístico. Trata-se de recursos que deixaram de entrar nos cofres do município para financiar habitação popular. No Recife, nunca se arrecadou um centavo de outorga onerosa. Um dinheiro que tem feito muita falta. Por outro lado, a discussão de ocupar o Centro com habitação de interesse social se arrasta há 20 anos, sem nenhum resultado efetivo. Quase não se conseguiu ocupar prédios vazios na região central da capital, justamente a área com melhor infraestrutura e mobilidade urbana. Bairros como São José e Santo Antônio seguem como promessas de oferta de moradia popular que nunca vingaram.
Mais do que uma ferramenta de arrecadação fiscal, os instrumentos urbanísticos precisam ter uma destinação específica para ter uma efetividade no combate ao déficit habitacional. A experiência de São Paulo novamente é exemplar. Não só pelo volume milionário de recursos que arrecada, mas pelo aprendizado da destinação focada em moradia popular. “Com a aprovação do novo Plano Diretor, a outorga onerosa virou um dinheiro carimbado. Antes não era. Antes você arrecadava a outorga para alimentar o Fundo de Desenvolvimento Urbano e esses recursos podiam virar pavimentação, pracinha, escola, até porque as prioridades são muitas. Agora está escrito na lei que a principal urgência é a produção de habitação de interesse social”, destaca o arquiteto Marcelo Ignatios, superintendente de Estruturação de Projetos da SP Urbanismo, que planeja a execução das obras financiadas pelo fundo na capital paulista.
Ele explica que pelo menos 30% do que é arrecadado no fundo é aplicado na compra de terrenos para habitação de interesse social, em desapropriações e no planejamento das áreas voltadas para a população mais pobre da cidade. “Pode até gastar mais. Mas não pode menos do que esse percentual”, ressalta Marcelo. É uma ajuda e tanto. Atualmente o fundo conta com recursos da ordem de R$ 800 milhões. “A inovação foi a articulação. A gente começou a articular Zeis, com outorga onerosa, com operações urbanas consorciadas, que é outro instrumento importante para o planejamento inclusivo da cidade. Criamos uma fórmula de cálculo que induz o mercado a produzir nos lugares em que a prefeitura deseja e fizemos uma modelagem econômica que é interessante para o setor privado e para a gestão pública. Tanto que o fundo registrou uma arrecadação histórica este ano”, ressalta Marcelo Ignations.
Tão importante quanto arrecadar recursos para financiar os imóveis de interesse social é reservar áreas da cidade para a construção dessas moradias. “Esse é um ponto fundamental porque precisa ter a participação direta do gestor público. É ele quem vai apontar as áreas que podem ser destinadas a esse tipo de habitação. Mas isso não foi feito no Plano Diretor que está para ser votado na câmara”, avalia Socorro Leite, coordenadora da ONG Habitat para a Humanidade. Como o preço dos terrenos na capital são altos, ela avalia que, se não houver uma ação do Estado para baixar esse valor ou disponibilizar áreas específicas, não há como garantir oferta de terreno para moradia popular. O secretário Antônio Alexandre diz que o plano criou um banco de terras e imóveis que podem ser usados para habitação social, com o objetivo de enfrentar o déficit habitacional. Mas, na prática, a única nova Zeis proposta pelo novo Plano Diretor da capital é a do Pilar, no Bairro do Recife.
A proteção prevista em lei da área de vizinhança nobre, a 700 metros da sede da prefeitura e encravada no bairro mais turístico da capital, é um alívio para os moradores da comunidade. Mas ainda não se traduziu em moradia digna. Há onze anos, eles convivem com a promessa de construção de 588 apartamentos para abrigar quem reside no Pilar. Só 192 foram entregues. Catarina Carla de Araújo, 36 anos, viu o sonho desmoronar duas vezes: quando derrubaram a casa que, com muito esforço, ela tinha reformado, com banheiro de cerâmica, piso, parede rebocada. E agora, quando já perdeu a esperança de ver de pé o conjunto residencial onde finalmente terá um apartamento para morar. “Da minha antiga casa, ficaram só os escombros. Hoje eu vivo de aluguel e de promessa.”