Antonio Joaquim de Santana tem os olhos fatigados de tanto ver o mundo. Já enxerga pouco e a audição não é mais tão boa. Decorar o nome dos 49 netos, 78 bisnetos e 23 tataranetos é tarefa impensável. Mas a memória não falha ao recordar fatos que marcaram seus 115 anos de vida completados em 10 de julho de 2019. “Não sei quando Deus vem me buscar, se ele me der forças, espero viver mais uns 20 anos”, diz seu Antonio, homem de sorriso fácil, voz mansa, passos miúdos e bom de prosa, às vésperas do Dia do Idoso, celebrado na próxima terça-feira, 1º de outubro.
Sentado numa cadeira da casa onde mora, no povoado Chã do Esconso, em Aliança, município da Zona da Mata Norte de Pernambuco, ele começa a conversa dizendo que não lembra de quando era pequeno. Não é bem assim. Antonio Joaquim, o mais novo entre cinco irmãos, recorda que a vida não foi fácil. Ficou órfão de pai aos 2 anos de idade e, por necessidade, começou a trabalhar cedo. “Com 5 para 6 anos eu já arrancava mato no pé da roça com as mãos, porque ainda não podia pegar na enxada”, afirma.
A mãe, Maria Júlia da Conceição, ensinou ao menino como fazer o serviço. “Ela mostrava como era, mas às vezes eu arrancava o pé de roça e deixava o mato, aí vinha a bofetada”, relata, sem mágoas. “Minha mãe trabalhava numa casa de farinha, pagavam uma mixaria a ela, dois mil-réis (unidade monetária no Brasil do século 19 até 1942)”, comenta Antonio Joaquim, que tem na carteira de identidade o carimbo de pessoa analfabeta. “Meu estudo foi a enxada, desde pequeno, nunca fui para a escola”, declara o idoso.
Aposentado com um salário mínimo, benefício criado em 1940 pelo então presidente Getúlio Vargas, ele passou toda a vida plantando e colhendo em terra alheia. Por mais de 40 anos trabalhou nos Engenhos Ronca, Pau Sangue e Mata Limpa, do mesmo proprietário. “Fui canavieiro pouco tempo, eu era da agricultura, da lavoura do inhame, da batata e da macaxeira, plantei muita banana, laranja e abacate. Eu pegava das 5h30 às 11h e das 12h30 às 17h30, todo mundo era assim, não era eu sozinho, não.”
Os patrões e os colegas de ofício “foram estudar a geologia dos campos santos”, com a licença do escritor Machado de Assis (1839-1908). “Parece uma mentira, tinha não sei quantos empregados nos engenhos e não tem mais nenhum vivo, só eu continuo por aqui”, diz o idoso, que perdeu as contas do número de enterros que acompanhou. Há dez anos, fragilizado pela idade, ele deixou de trabalhar no quintal de casa onde cultivava banana, feijão e macaxeira e inhame. Quem cuida da roça é o filho Luiz José de Santana, 58 anos, o caçula dos homens.
Em 1904, quando Antonio nasceu, Aliança era um distrito de Nazaré da Mata. Só em 1928 o lugar, distante 90,7 quilômetros do Recife pela BR-408, é reconhecido como município. No último censo demográfico do IBGE, em 2010, Aliança era habitada por 37.415 pessoas. Apenas três homens e uma mulher ocupavam o topo da pirâmide etária que registra a população com 100 anos ou mais. Aos 106 em 2010, Antonio Joaquim já fazia parte do grupo. O mesmo censo identificou 387 homens acima de 100 anos em Pernambuco e 7.245 no Brasil.
“Muita gente duvida da minha idade, quando se começou a tirar documento por aqui eu já trabalhava há muitos anos”, observa, enquanto Luiz José apresenta a carteira de identidade e a certidão de casamento para comprovar a data de nascimento do pai. Antonio se casou pela primeira vez perto dos 18 anos. O matrimônio durou oito anos e deixou três filhas, todas vivas. Do segundo casamento teve 12 filhos. Uma moça e um rapaz morreram aos 24 anos; três meninas e um menino não resistiram a doença respiratória entre 2 anos e 2 anos e meio.
Os descendentes do idoso centenário estão espalhados por Aliança, Condado (Zona da Mata), Goiana (RMR), Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. “É difícil juntar todo mundo, nem cabe na casa”, brinca. A união com a segunda esposa, Maria da Glória de Santana, 89, dura 75 anos. “Para ajudar a criar os filhos, trabalhei com enxada em roçado, em casa de farinha e apanhando capim para boi”, diz ela. “Na época o trabalho na casa de farinha era no braço, hoje tem motor”, comentam.
Maria da Glória e Antonio Joaquim (Foto: Filipe Jordão)
Maria da Glória era vizinha de Antonio em Chã do Esconso, onde nasceram e se criaram, e pegava água para a irmã num cacimbão onde ele trabalhava. “Eu sozinho, meio maduro, me engracei dela, mocinha, com uns 15 anos. No cacimbão, todo dia eu dava a ela uma laranja-bahia, ela botava no pote de água e levava para casa”, diz. “Era uma laranja tão doce”, relembra Maria da Glória. Conquistada pelo açúcar da fruta e pelo afeto do quarentão, oito dias depois de ser pedida em casamento ela disse sim a Antonio.
Homem simples do campo, o agricultor vivia de casa para o trabalho. Os irmãos, diz ele, morreram com menos de 80 anos. Fumou por mais de 50 anos, nunca bebeu, gosta de jaca, abacaxi, carne de charque, macaxeira e quarenta (um tipo de angu cozido no fogo com fubá e água). Antonio só lamenta nesses 115 anos nunca ter aprendido a dançar. “Foi uma coisa que perdi na vida, se abraçar com a filha dos outros para dançar, pegando a moça pela cintura, é bom que é danado, cheguei nessa idade e não fiz isso”, diz o idoso, sem segurar o sorriso.
“Admiro a história dele, um homem explorado e sempre com um sorriso no rosto, não conheço outro agricultor de 115 anos no Brasil”, declara padre Tiago Thorlby, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT-PE).