''Não vi meus filhos crescerem'', diz filha de caminhoneiro sobre único arrependimento do pai

Karol é filha, neta, sobrinha e prima de caminhoneiros
Karoline Albuquerque
Publicado em 30/06/2016 às 15:12
Foto: Arquivo pessoal


Quando fui questionada sobre a possibilidade de escrever sobre a vida de alguém que nasceu cercada por caminhoneiros, respondi logo que meu pai estava viajando. Algo bastante comum desde que me entendo por gente. Sou filha, neta, sobrinha e prima de caminhoneiros. Listar todos seria injusto: são muitos. Muitos mesmo. Haja Albuquerque no mundo. Haja mundo para Albuquerque.

Meu pai, Jaime Albuquerque, também viu meu avô, Antônio Albuquerque, e os tios na profissão. Junto com ele, tio João, tio Carlos e tio Alberto, todos os filhos, resolveram seguir os passos do pai. “Eu só queria duas coisas na vida: ou trabalhar em manutenção industrial ou dirigir caminhão”, disse painho. Ele é formado no curso técnico de ajustador mecânico pela Etepam, mas nunca exerceu a profissão.

Então, chegou mais uma geração. César Albuquerque é meu único primo (de primeiro grau, pois os filhos dos tios de painho também seguiram para a estrada) atrás de um volante para ganhar a vida. “Vem de berço, porque não tem ninguém que queira trabalhar com isso por diversão”, explica ele, que tem apenas 26 anos.

As estradas são precárias e os perigos são muitos. “Só peço proteção a Deus, que eu faça uma viagem tranquila”, diz meu pai. Para ele, a pior rodovia é aqui mesmo na Região Metropolitana do Recife. “É um trecho ruim, péssimo, precário mesmo, entre Jaboatão e Igarassu”, destaca sobre a BR-101. Com relação a acidentes, existe outra estrada federal preocupante. “A BR-381, em Minas Gerais é de pista simples, com muitas curvas e serras”, relatou.

Em todos esses anos de idas e chegadas, o pior momento, para mim, foi quando meu pai foi a vítima de um acidente. Em 20 de outubro de 2006, um pneu estourou e o caminhão tombou. Não é um assunto fácil de relatar. Mas lembro bem. Estava dormindo com minha mãe em casa quando a ouvi falar ao telefone. Sem entender muito e com medo de mostrar que estava acordada e deixá-la ainda mais preocupada, apenas rezei. Rezei muito, com toda a fé que alguém recém saída da infância pode colocar. E minhas preces foram atendidas. O prejuízo foi financeiro, mas meu pai voltou para casa inteiro, com apenas uma torção em cada braço. Isso não tem preço.

Arquivo pessoal
Eu e meu irmão Jaiminho em Minas Gerais, em 2001 - Arquivo pessoal
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Meu pai e meu irmão na estrada - Arquivo pessoal
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Eu e meu irmão dormindo no caminhão do meu pai - Arquivo pessoal
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Meu pai ajustando o pneu e meu irmão do lado, tentando aprender - Arquivo pessoal
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Meu primo César com os caminhões feitos por vovô Toinho - Arquivo pessoal

No Brasil, a maior parte do transporte de cargas é feito através das rodovias. “Trabalhamos para todo mundo. O que você tem ao seu redor é através de transporte”, destaca Jaime. A profissão não é reconhecida, apesar da importância. “O preço do frete está defasado e grande parte das empresas exigem horário, mas pelas normas, a gente só pode trabalhar 10 horas por dia. Tem relatos de empresa que exige que o caminhoneiro trabalhe até 20 horas. Indiretamente, pressionam para que o motorista tome o famoso ribite”, disse meu pai. 

Segundo ele, porém, apesar dos relatos dos colegas de estrada, o uso do remédio, um inibidor de apetite, diminuiu com o passar dos anos. O apelo do meu pai, primos, tios e o de muitos caminhoneiros é que a classe receba mais atenção.

Antes, as viagens duravam de oito a dez dias. Na mais longa, foram mais de duas semanas longe. Meu pai costumava ir para o Sudeste. “Tem gente, principalmente do Sul, que passa de seis meses até um ano sem ir em casa”, comenta. César já conhece a rotina. “Sei que são muitos finais de semana, feriados que eu não posso passar com minha família, mas tenho orgulho de trabalhar com isso”, diz meu primo. Assim como eu, ele também cresceu vendo o pai, meu tio Carlos, pegar a estrada.

Alguém da família sempre na estrada não é algo com que você pode se acostumar. Nunca vai deixar de sentir falta. Um aniversário ou um Dia dos Pais distante ainda incomodam, mesmo que passem dezenas de anos. Diferente de mim, quando meu irmão nasceu, meu pai viajava. “Estava em Teófilo Otoni (MG), voltando de Belo Horizonte para casa, quando soube que ele (Jaime Filho) nasceu”, conta painho. Do outro lado do ciclo da vida, quando vovô Toinho faleceu, em 1999, meu pai também não estava aqui. Deixou o caminhão na Bahia, pegou um avião e voltou.

Há mais de 30 anos na profissão, Jaime Albuquerque só tem um arrependimento: “Não vi meus filhos crescerem”, lamenta. Agora, ele traça sua rota pelo Nordeste, algo que comemoro, pois traz meu pai para casa mais rápido. Falei isso para ele, enquanto conversávamos sobre esse texto. “É bom saber disso, porque sei que meus filhos me reconhecem. Têm muitos companheiros de estrada que para os filhos são meros conhecidos”, afirma. Apesar da estrada constante, ainda assim, posso garantir: as viagens nunca tornaram meu pai ausente.

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