Dez anos da Lei Maria da Penha: a luta para barrar a violência contra a mulher

Marco legal em defesa da mulher, legislação enfrenta desafios antigos e novos para mudar cultura machista da sociedade brasileira
Ciara Carvalho
Publicado em 06/08/2016 às 17:28
Marco legal em defesa da mulher, legislação enfrenta desafios antigos e novos para mudar cultura machista da sociedade brasileira Foto: Fernando da Hora/JC Imagem


Chamando pelo número, Lei 11.340/06, ninguém conhece. Mas, se disser Lei Maria da Penha, ela está na cabeça e na boca de 98% dos brasileiros, segundo pesquisa realizada em 2013. É marco simbólico e legal, é referência internacional, são vidas salvas. A garantia de segurança e a promessa de punição para o agressor encorajaram milhares de mulheres a romper o silêncio. A Lei Maria da Penha completa hoje exatos dez anos diante de antigos e novos desafios. Permanece convivendo com índices altíssimos de assassinatos de mulheres. Sofre com a falta de políticas públicas que garantam a efetividade de suas ações. É alvo, desde o início, de projetos de lei que tentam enfraquecer seu poder de alcance e de punição. Mas, em sentido contrário, também reafirmou sua força e ficou mais abrangente. Nos últimos anos, suas prerrogativas legais começaram a ser estendidas aos transexuais. Ao definir a proteção à mulher não como uma questão de sexo, mas de gênero, como diz o próprio texto da lei, está mais atual do que nunca.

Em fevereiro deste ano, a juíza Marylusia Feitosa, da 2ª Vara da Capital de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, concedeu medida protetiva a uma transexual vítima de violência praticada pelo companheiro. Usou a Lei Maria da Penha para afastar o agressor da vítima. Foi a segunda vez que a caneta da juíza assegurou esse direito a um transexual. A primeira, no ano passado, colocou a Justiça de Pernambuco como uma das pioneiras ao aplicar a lei em seu sentido mais amplo. “O Judiciário é o ponto chave para a efetivação das garantias previstas na lei. Gênero não é sexo. É identidade. Defendo, inclusive, que esse direito aos transexuais e transgêneros esteja expresso na lei. Para que independa de interpretação. Vejo essa conquista como um dos desafios fundamentais da Lei Maria da Penha para os próximos anos. Quanto mais inclusiva, maior será sua eficácia”, avalia a magistrada.

Como todos os números que envolvem a violência doméstica praticada contra a mulher, a juíza viu o número de processos explodir depois da criação da lei. Em 2007, quando foi criada a primeira vara especializada da mulher em Pernambuco, havia 7 mil processos em tramitação. No final do ano passado, já com três varas específicas em atuação na capital, o quantitativo era de 22 mil processos. “Foi a violência que aumentou? Não. Era uma demanda reprimida. Com todas as dificuldades de implementação, esse é um ganho fantástico da lei. Ela deu voz, deu poder, deu meios para que a mulher pudesse denunciar a agressão. Fez com que ela acreditasse que a exposição não seria em vão, que o agressor seria realmente punido”, ressalta Marylusia Feitosa.

O aumento da visibilidade da agressão, no entanto, não fez os indicadores de violência contra a mulher atingirem patamares mais baixos. Mesmo quando se verifica uma redução, como nos casos de homicídio, os números ainda são alarmantes. Em 2006, ano de criação da lei, 321 mulheres foram assassinadas em Pernambuco. Em 2015, a matança atingiu 245 vítimas. E, nos primeiros sete meses deste ano, já foram contabilizados 158 homicídios. Quando se observam os registros de casos de estupros, nos últimos seis anos, a média tem sido em torno de dois mil casos, por ano. Desnaturalizar a violência contra a mulher é, na opinião da feminista e educadora da ONG SOS Corpo, Simone Ferreira, uma das maiores conquistas da Lei Maria da Penha. “Ela veio para dizer que não é normal bater em mulher, não é normal matar a mulher por causa de ciúmes. A desnaturalização força a sociedade a mexer na sua estrutura de poder machista e patriarcal”, afirma Simone Ferreira.

À frente da Secretaria Estadual da Mulher, Sílvia Cordeiro lembra que a lei mexe com valores conservadores seculares e, por isso, sua implementação é tão difícil. Mesmo com todos os avanços, ela avalia que é preciso melhorar a eficiência dos serviços oferecidos. “A gente tem que brigar o tempo todo por mais estrutura, para aumentar o financiamento das políticas públicas, ampliar a qualidade do atendimento no interior, melhorar a notificação no sistema de saúde. Só funciona se garantirmos a efetividade dessa rede protetiva.”

Uma análise dos indicadores revela que esses desafios são ainda maiores quando dizem respeito a garantir a proteção da vida da mulher negra. Em Pernambuco, 60% das mulheres assassinadas são negras. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado no ano passado, mostra que a Lei Maria da Penha contribuiu para uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra a mulher praticados dentro das residências do Brasil. Mas, no caso das mulheres negras, não há o que comemorar. O índice de assassinatos, nesse segmento, seguiu a curva inversa. Aumentou 54% em dez anos.

 

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