"A agressão vinha do nada. Ele pedia perdão. Chorava. E, de novo, eu era espancada. No começo eu carregava muita culpa. A primeira vez que ele me bateu eu estava tomando banho. Ele me arrastou pelos cabelos e disse que eu estava querendo me amostrar para os homens da rua. Mais tarde, vieram os murros, os chutes.
E eu sabia quando ia apanhar. Eu sabia pelo olho dele. Ele olhava para cima de mim, transformado. Não era aquela pessoa com quem eu casei. Eu perguntava: ‘Tu vai bater em mim?’ E ele: ‘Mais nunca. Deus me livre’. Meses depois, acontecia de novo. Se eu comprava errada uma coisa que ele pediu, apanhava. Se eu não ouvisse direito uma pergunta que ele fez, apanhava. Já apanhei nas costas com cabide de madeira quando estava passando ferro nas camisas dele.
Eu sempre pedia a Deus que me desse forças para eu ir adiante. Foram 23 anos de casamento. Porque a família diz para a gente: ‘Casou, tem que viver. Não foi você que escolheu?’ Mas eu não estava mais suportando. O que dói mais não é a dor física. É a dor na alma. Os hematomas passam. Mas a alma parece que não tem cura. Porque tem palavra que machuca mais do que uma surra. Quando eu criei coragem para ir na delegacia denunciá-lo não foi só pelos espancamentos. Foi pelos xingamentos. Teve um dia que eu não suportei ser tão humilhada com palavras tão duras.
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Eu era motivo de chacota dos vizinhos. Eles diziam: ‘Ela é safada, gosta de apanhar’. O dia que eu decidi ir na delegacia foi o dia da minha salvação. Ali eu perdi o medo. Depois que eu entrei na delegacia, sabia que não ia mais poder voltar atrás. Dali, voltei só para pegar minhas roupas. Fui para o abrigo, onde passei três meses. Fui bem cuidada. É um lugar importante para a gente se fortalecer. Eu aprendi que tenho meus direitos, coisa que eu não sabia que tinha. Aprendi que gentileza gera gentileza. E perdi o medo. Perdi o medo até de morrer.
E quando eu vejo um homem falando mal da Lei Maria da Penha, eu vou para cima. Defendo essa lei em qualquer canto, com qualquer pessoa. O homem pensa que a lei tirou o direito dele. Porque eles acham que a gente é posse deles. Hoje não existe um homem para bater em mim e eu ficar calada. Eu me sinto livre, forte. Mas isso só aconteceu porque eu perdi o medo."
Lindacy Maria dos Santos, 50 anos. A dona de casa foi espancada durante anos pelo marido. Diz que só perdeu o medo quando denunciou o companheiro na delegacia