Ela precisou esperar 19 anos e seis meses para ver o ex-marido, que a deixou paraplégica, ir para a cadeia. Sua luta virou a luta de todas as mulheres. E seu nome deu nome à lei mais importante do País para proteger a mulher vítima de violência. Nesta entrevista, concedida por telefone, de Fortaleza, onde mora, Maria da Penha Maia Fernandes, 71 anos, diz que a primeira década foi só o começo. Tem muita luta pela frente.
JORNAL DO COMMERCIO – Essa onda conservadora que varre o Congresso Nacional é uma ameaça à Lei Maria da Penha?
MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES – Não tenha dúvidas. A vigilância tem que ser constante e de todos. É eterna. Não podemos descansar. Desde a sua criação e até hoje existem setores machistas dispostos a enfraquecer a lei. Em 2009, derrubamos um projeto que transformava a violência doméstica em delito de baixo potencial ofensivo. Tivemos que impedir esse retrocesso. Há resistência entre gestores também. Isso é tão presente que as políticas públicas que atendem à Lei Maria da Penha só foram criadas, nesses dez anos, nas grandes cidades. Nos municípios menores, não há delegacias abertas no fim de semana para a mulher denunciar a agressão sofrida, não há rede de assistência. Não dar estrutura para a aplicação da lei é uma forma de enfraquecê-la.
JC – Qual foi a conquista mais importante da lei nessa primeira década?
MARIA DA PENHA – A segurança que ela dá às mulheres de serem protegidas. A principal finalidade da lei é proteger a mulher e prender o homem agressor. Isso acontece em todos os lugares? Ainda não. Mas essa é a nossa luta. Fazer com que todas as mulheres, não só as das grandes cidades, encontrem proteção na lei.
JC – Onde e como essa rede de proteção precisa melhorar?
MARIA DA PENHA – Uma das minhas lutas é a criação da Casa da Mulher Brasileira, que centralizaria, em um único lugar, o atendimento policial, o Ministério Público e a Justiça. Existem poucas hoje já criadas no País, como em Campo Grande e Brasília. Aqui em Fortaleza, prometeram inaugurar uma no fim deste mês.
JC – Os números de assassinatos de mulheres em Pernambuco ainda são alarmantes. No mês de junho, foi um recorde de 36 assassinatos. Em julho, 26 homicídios. Por que essa matança continua?
MARIA DA PENHA – Esses números sempre foram muito altos. Mas eles não tinham visibilidade. Tem outra questão que é o fato de que uma parte desses homicídios se deu, eu acredito, em cidades onde não há uma estrutura para proteger a mulher. Daí a importância de os futuros prefeitos terem compromisso com essa causa.
JC – Essa deveria ser uma prioridade no programa de governo dos candidatos nestas eleições? Os eleitores estão atentos para fazer essa cobrança?
MARIA DA PENHA – Eu acho que o movimento de mulheres de cada Estado tem que reivindicar essa prioridade dos candidatos a prefeitos, principalmente das pequenas cidades. Que eles assinem uma proposta que garanta à mulher fazer a denúncia em seu município, sem precisar se deslocar para a capital para receber essa assistência.
JC – A postura da mulher hoje é mais corajosa diante da violência? Ou o medo ainda fala mais alto?
MARIA DA PENHA – Na verdade, as mulheres agredidas só estão mais corajosas nos locais onde há delegacias e assistência para receber essa denúncia. Por isso que as ocorrências aumentaram tanto. Porque elas se sentem seguras para denunciar. Onde não há essa rede, o silêncio termina se impondo. Essa coragem está diretamente associada a uma estrutura de proteção. Por isso, eu digo que estamos só começando. São séculos de cultura machista. Temos ainda muita luta pela frente.