O médico cubano Yoanner Gonzalez Infante, 30 anos, é um dos cubanos desligados do Mais Médicos. Na semana em que o governo de Cuba pediu o retorno dos profissionais, ele compartilhou em redes sociais um desabafo que rodou o mundo. Nesta entrevista à repórter Cinthya Leite, ele fala da medicina humanizada e da experiência em Paulista, onde atuou por mais de um ano.
Aquele desabafo (Yoanner publicou um texto, no Facebook, depois de o presidente eleito, Jair Bolsonaro, ter declarado condicionar a permanência dos médicos cubanos, no Mais Médicos, à revalidação do diploma e recebimento do salário integral pelos profissionais), e não uma carta aberta a Bolsonaro, foi espontâneo. Foi uma resposta que eu encontrei para reagir a uma ofensa que estava sendo feita não somente a mim, mas a todos os médicos cubanos. Foi um desabafo que começou a se espalhar e, quando percebi, já tinha 32 mil compartilhamentos. Quando eu li as palavras de Bolsonaro em algum veículo jornalístico do qual não lembro o nome, falando que nós éramos fantasiados, que não éramos realmente médicos, e que duvidava que alguém gostaria de ser atendido por um médico cubano, eu tinha todos os motivos para ficar arretado. Ninguém tem o direito de questionar a qualidade dos médicos cubanos desse jeito. Ele também disse que nós não poderíamos trazer a família para o Brasil. Em nenhum momento, contudo, fiquei impossibilitado de trazer a minha família para o Brasil. Eu até poderia, mas as prioridades são outras. Não se pode ficar pensando em viagem de turismo quando se precisa comprar uma máquina de lavar para a mãe ou sapatos e roupas para os sobrinhos. Mas tenho esperança de que ele, como patriota brasileiro, tenha a oportunidade de fazer as coisas certas no Brasil. Ele merece a chance de demonstrar se a gestão como presidente será boa ou ruim.
Eu me formei em 2014. Fiz a minha residência em medicina familiar, com o objetivo de tratar a pessoa como um todo, pois não podemos ver uma doença psicológica longe da orgânica. Devemos saber que fatores sociais e emocionais favorecem a presença de determinada doença. Acredito na prevenção. Bem feita, a medicina familiar é incrível e precisa principalmente de recurso humano. Falamos daquele médico que vai a uma casa onde jamais um médico chegou. É emocionante quando as pessoas querem um abraço nosso e dizem que somos os primeiros a chegar à casa delas. Encontrei muitas residências assim em Paulista (município do Grande Recife onde Yoanner atuou por mais de um ano). Certa vez, até fiquei assustado quando vi uma senhora chorando em casa quando cheguei. A agente de saúde perguntou por que, e ela disse que era a emoção por ter um médico em casa. Eu achava até que estava acontecendo alguma coisa, pois nunca tinha visto alguém chorando pelo simples fato de ter um médico em casa. Lembro sempre as palavras da minha primeira preceptora na medicina. Ela dizia que, para não errarmos no atendimento, tínhamos que cumprir um princípio de imaginar que, durante a consulta, aquela pessoa pode ser a nossa mãe, tia, irmão ou vizinho para, pelo menos, fazer um tratamento humanizado.
Na prática, comprovei que as pessoas, além de estarem carentes de atendimento médico, necessitam da escuta, de se sentir compreendidas por alguém. Para aquelas pessoas que chegam ao consultório com pressão arterial alta, não podemos nos limitar a prescrever um remédio. Temos que tentar achar a causa pela qual uma senhora, por exemplo, tem hipertensão; e podem ser muitas as causas. Então, começamos a conversar, e aquela mulher começa a chorar e a contar sobre uma situação pessoal ou familiar complicada: o filho envolvido com as drogas e desempregado, ela tomando conta dos netos porque a mãe das crianças morreu baleada... Então, a gente escuta essas pessoas, que vão às unidades de saúde para receber atendimento e desabafar. Aí, elas vão em paz para casa porque alguém escutou o que elas tinham para falar.
Uma das queixas principais da população brasileira é a seguinte: “O médico não me escutou. Eu falei, mas ele nem olhou para minha cara”. Mas nem todos os médicos brasileiros são assim. Na minha vida profissional, tive dois momentos: o primeiro foi com os preceptores cubanos que nos ensinaram a dar os primeiros passos na medicina. Depois, tenho que reconhecer a qualidade das minhas preceptoras brasileiras, sobretudo de Fátima Nepomuceno (médica de família e comunidade). Além de ser muito experiente, é humana e luta por uma saúde pública de qualidade. Ela esclarecia as nossas dúvidas a qualquer hora. Foi uma experiência linda. No Brasil, conheci médicos humanos que, para mim, são e serão, referência para a minha futura vida profissional. A gente não pode generalizar a falta de humanismo dos médicos. Do mesmo jeito que há os brasileiros que não olham para a cara do paciente, existem os médicos cubanos com o mesmo comportamento. Entre os 8 mil e tantos cubanos que atuavam no Brasil, há médicos bons, regulares e ruins. Nem todos são do mesmo jeito; é impossível.
Cheguei ao Brasil em julho de 2017. Fomos logo a Brasília, onde ficamos uns 15 dias esperando a vaga destinada pelo Ministério da Saúde. Com certeza, quando um médico cubano vem ao Brasil, vem disposto a trabalhar no interior do Amazonas, caso seja preciso. É assim que se vê quem está realmente disposto para tratar e atender pessoas onde seja preciso. Não é fazer atendimento nos locais de que se gosta; assim é fácil. Eu assinei um compromisso que, se tivesse que trabalhar nos distritos indígenas, eu iria. Minha vaga foi para o município de Paulista, do qual já fui desligado (como profissional do Mais Médicos). Eu atuava numa unidade de saúde que estava cheia de mofo, sem ar-condicionado, com condições de trabalho difíceis. Fizemos reclamações, e a secretária de Saúde da cidade sempre se preocupava, mas não tinha recursos. Quando a verba chegou, foi a primeira unidade a ser requalificada. Hoje em dia, está nova, até com prontuário eletrônico. É a Unidade de Saúde da Família Maranguape I B. A gente tinha uma área definida para trabalhar, mas geralmente fazia atendimentos de locais descobertos também, pois não negamos consulta a quem não tem um clínico-geral no posto do município onde mora. Fiz muitas visitas domiciliares, vi famílias com muitos problemas que passaram a ser acompanhadas. Não é só diagnosticar esses problemas e deixar escrito no prontuário. Temos que analisar as medidas e fazer o planejamento para reverter todas as coisas ruins diagnosticadas na família.
Nos últimos tempos, tinha um grupo de uns quatro ou cinco idosos que me esperavam sair do posto de saúde por volta das 17h, 17h20, já perto de anoitecer. Eles ficavam na frente de casa e me chamavam para bater um papo. Era lindo! E olhe que, ao largar, eu já estava com dor de cabeça, cansado, com sono... Mas eu ficava de 15 minutos a meia hora conversando com eles. É emocionante quando percebemos que a população reconhece o nosso lado humano. É uma injeção que vamos tomando todos os dias para continuarmos amando o que fazemos. A despedida em Paulista foi muito linda; foi uma das poucas vezes em que vimos um prefeito chorando junto conosco. Eu levarei comigo muita saudade, pois é impossível esquecer as demonstrações de carinho que guardamos no coração. E eu vou falar a verdade, viu? Ainda não acredito que vou embora. É um pesadelo que estou vivendo, pois eu não estava preparado para me despedir tão rápido das pessoas. No tempo em que passei trabalhando no Brasil fui assaltado pelo amor da população, pelo carinho de gente que passa na rua e a quem ofereci atendimento. Agradeço ao Brasil ter me acolhido como filho.