A carioca Deborah Colker deu mais uma grande prova de intensa maturidade artística no palco do Teatro Guararapes. Se não trouxe completamente seus bailarinos ao chão, ainda deslocando os intérpretes por coreografias verticais e quase aéreas, a coreógrafa não explora apenas os limites físicos. Investe fortemente na contundência poética das narrativas da companhia que leva seu nome e é hoje o grupo de maior prestígio internacional na dança brasileira. Foi o que vimos na temporada recifense de Belle, este final de semana.
A história do franco-argentino Joseph Kessel levada ao cinema pelo surrealista Luis Buñuel em 1967 tomou Deborah de assalto quando ela tinha, há quatro anos, acabado de estrear seu espetáculo anterior, Tatyana. Decidiu, então, converter Bela da tarde em dança.
Se não temos, como ela mesa diz, todos os personagens em ordem narrativa cronológica no palco, durante os cerca de de 60 minutos de espetáculo entramos em contato com as "forças" do romance sobre a dona de casa de vida burguesa que supre seu vazio existencial com tardes num motel onde chega mesmo a dar dinheiro para que homens de poucos recursos possam acessá-la.
Nesse embate entre carne e espírito, moral e instinto, casa e bordel, Deborah escala duas atrizes para viver a dupla personalidade de Severine, a dona de casa que se tranforma em Belle nas tardes em que suores e secreções substituem o papel social de esposa domesticada.
Figurinos, cenários e movimentos começam mais comedidos quando a protagonista Rosina Gil, loira e alta, se nos apresenta como a esposa encerrada em tédio. Com movimentos incluisve mais clássicos do balé, como pax-de-deus e pivôs, os bailarinos surgem em cena com as tradicionais sapatilhas de ponta.
Ao logo do espetáculo, convenções progressivamente abandonadas, elas dão lugar a pés no chão na medida em que a outra protagonista, Sheila Lokiec, morena e mais baixinha, toma conta da cena como a outra persona contida na personagem. Em cena, erotismo em cada gole de ar que respira, Sheila é uma pequena grande força da natureza.
Figurinos mais ousados, com nudez sugerida, podem ser vistos no cenário de Gringo Cardia marcado por uma imensa escada suspensa e uma vara de pole dance por onde a interprete Sheila desliza e voa seminua com a precisão de uma diva. Mais tranquila no início, a direção musical de Berna Ceppas vai assumindo as tensões da personagem.
Com clara inspiração cinematográfica e cenas que valem como fotogramas, capazes de se fixarem na memória do público, o espetáculo é pleno de bons achados e metáforas visuais.
Um dos momentos mais visualmente contudentes é quando Severine, interpretada pela loira Rosina Gil, dança colada a uma grande malha branca que lhe serve de cenário e parceiro. No decorrer da coreografia, corpos masculinos aparecem, supostamente despidos, colados na parte de trás da malha. Como se sugerissem o dínamo erótico do qual a personagem tenta, ainda, espacar, os corpos e mãos fazem a bailarina praticamente flutuar para cima e para baixo diante da malha. Impressionante como a intérprete consegue oscilar da leveza libertadora a um peso culpado em seus movimentos.
A dicotonima natureza e cultura, ou seja, instinto e moral social, fica ainda mais clara quando temos as duas bailarinas em cena duelando coreograficamente sobre qual das personas deve prevalecer sobre Severine.
Leitora atualmente entusiasmada de João Cabral de Mel Neto, Deborah Colker diz que não descarta continuar usando a literatura como timoneiro de seus próximos espetáculos. E anda também tentada a utilizar elementos de danças populares de Pernambuco pelas quais diz manter grande afinidade.