“Se eu fizer um caminhão igual a um de verdade, vai ser igual a todos os outros e ao de todo mundo. Então, fiz a minha regra”. É assim que José Francisco da Cunha Filho, o mestre Cunha, de Jaboatão dos Guararapes (PE), explica de onde tira a ideia de fazer máquinas e pessoas misturadas a bicho.
É realmente difícil encontrar um trabalho parecido em feiras de artesanato no país. Os seres antropomórficos (características humanas aliadas a outros seres e coisas) de Cunha são bem características. E é tudo feito à mão – cada peça é única, mesmo que sejam irmãs em conceito. O trabalho autoral e o talento manual o fazem um dos mestres do artesanato pernambucano, cujas obras estão expostas desde ontem (7) na Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), realizada no Recife até o dia 17 de julho.
Além de Cunha, mais de 40 mestres – e discípulos - apresentam seus trabalhos na feira. As peças são comercializadas, mas até os visitantes sem recursos saem de lá ganhando. Instalados na galeria principal do galpão, que conta com mais de 3 mil expositores, esses artesãos transformam a Fenearte em uma galeria de arte.
Os mestres, em sua maioria, estão presentes na feira. Mesmo com 93 anos, dona Maria Amélia da Silva não perdeu até hoje uma edição da Fenearte, que já dura 17 anos. Também não perde a oportunidade de produzir. “As mãos já estão ruins, mas eu continuo mesmo assim”, garante, com a voz baixa, sentada em uma cadeira de rodas ao lado de um Francisco de Assis de barro, obra sua.
A artesã de Tracunhaém estabeleceu o norte da vida dela e da família a partir de um brincadeira de criança. Começou modelando bonecos, aos 10 anos. Com o avançar da idade e do ofício criou um traço característico, de temática católica, sobretudo. Hoje, o conceito foi passado para outras gerações, que já incorporam novos elementos à obra da mestra. O neto Ricardo Felix da Silva Júnior, de 17 anos, resolveu esculpir também outros integrantes da sociedade: agricultor, médico, músico. “Todo ano a gente trazia a mesma coisa. Só santo, santo. Então resolvi variar um pouco”, conta.
O tema religioso pode ser visto em muitos dos mestres expostos na Fenearte. É histórico, assim como a cultura da resistência. Brincadeira que encanta crianças até hoje, o mamulengo parece inofensivo, mas sempre foi ligado ao protesto e à libertação. É o que ensina o mestre José Lopes, de Glória do Goitá. “Esses bonecos vieram de Portugal para catequizar os índios, com os padres. Só que a senzala se apropriou disso e usava o mamulengo para inverter os papéis. O senhor de engenho, o fazendeiro, é que ia para o tronco levar chicotada”, diz.
O teatro de mamulengo é feito com bonecos de “vara” ou “pau”, que são os manuseados por varetas, e também pelos “mão-molengas”, nas palavras de José Lopes – os fantoches que ganham vida com uma mão humana em seu interior. A arte dele se relaciona ao tema deste ano da Fenearte, que destaca os brinquedos – como o mamulengo – e os folguedos populares. “A gente brinca, mas educa. Sempre foi uma arte de protesto, contra a miséria, contra o preconceito racial. Hoje também”, garante o mestre.
Os mestres têm destaque na programação da feira, mas o espaço reúne uma variedade de mais de 5 mil expositores. A organização atribui à Fenearte o título de maior feira da América Latina. Setenta e cinco por cento dos artesãos são de Pernambuco. O restante é dos demais estados do Brasil e também de outros países. O espaço conta ainda com apresentações de grupos de cultura popular. A programação completa da Fenearte está na internet.
Dólar em alta
A expectativa de movimentação financeira da Fenearte é de cerca de R$ 40 milhões, com um público de 330 mil pessoas. De acordo com o coordenador da feira, Thiago Angelus, o cálculo repete a estimativa do ano passado, já que a crise econômica pode frear o consumo dos visitantes. Ele argumenta, no entanto, que o mercado de artesanato vive um bom momento.
“Além da Fenearte, também fazemos a gestão dos centros de artesanato de Pernambuco. E a gente tem percebido crescimento, por incrível que pareça, na venda de artesaanto. Com essa alta do dólar, do euro, muitos estrangeiros têm vindo ao Nordeste e comprado. E hoje, faltando 15 minutos para a abertura do evento, decidimos abrir o portão, proque tinha muita gente na fila”, afirma Angelus. “E os artesãos se prepararam, eles percebem o momento, trouxeram também peças menores, com preços mais acessíveis”.
Já os artesão se dividem sobre os efeitos da crise. A mestra Maria Amélia não tem problema com cliente: suas obras são encomendadas por gente do estado e de fora de Pernambuco. Em menos de três horas de feira já havia vendido quatro peças das mais caras, de cerca de R$ 400. Já o mestre do mamulengo garante a renda com apresentações. Por enquanto, José Lopes avalia que as vendas estão menores do que em anos anteriores.
Expositores de outras áreas do pavilhão, como Edgard Viana, do Recife, se supreenderam com o movimento. “Eu estou admirado. Em se tratando de crise, eu vim um pouco temoroso, mas fiquei supreendido com o movimento bom, como tem sido bem aceito. As pessoas estão gostando, estão comprando”, comemora.
A Pernambucana Bernadete Farias e o holandês Danny van Maarseveen estão aproveitando também para fazer o maior número de contatos possíveis. A estratégia é distribuir amostras grátis do stroopwafel, um biscoito típico da Holanda, tudo feito na hora. “Nós vendemos para padarias, delicatessens, restaurantes. Agora queremos chegar ao supermercado e aumentar a clientela”, diz Bernadete.