Um dos reflexos mais nítidos da relação do homem com sua história e cultura é o espaço público. Nele, percebemos intervenções, formas, texturas e cores que dizem muito do que foi e do que ainda é a humanidade. Esse olhar atento pode ser percebido no projeto Mesmo Sol Outro, dos artistas Carolina Cerqueira e Tálisson Melo. Nas fotografias, a dupla busca uma reflexão sobre as relações pós-coloniais nas culturas afro-brasileira e africana projetadas nos espaços físicos. O livro digital passa a ser disponibilizado na internet, nesta segunda-feira (19), contando com o apoio do Rumos Itaú Cultura.
Para entender de perto de que forma, ainda hoje, se perpetuam as marcas do colonialismo e da opressão cultural, os artistas percorreram Juiz de Fora (MG), Rio de Janeiro, Salvador, Cachoeira e São Félix (na Bahia), além da comunidade remanescente do quilombo Colônia do Paiol, em Bias Fortes (MG), Johannesburgo, na África do Sul, e terminaram em Luanda, capital de Angola.
Nas andanças, a dupla percebeu que as heranças históricas brasileira e africana são muito similares, em termos de culinária e vocabulário, por exemplo. Além disso, o abismo social que advém das relações escravocratas também é visível: “O que a gente percebeu de forma mais nítida e quase que inevitável é que todos esses espaços que são majoritariamente povoados por pessoas negras africanas ou afro-brasileiras são muito precarizados, onde você tem uma estrutura social configurada de forma muito desigual, muito violenta, lugares onde você tem núcleos de bairros muito ricos e um envolto de favelas”, explica Tálisson.
Em uma das fotos, que retrata a cidade de Cachoeira, no interior da Bahia, uma intervenção em uma igreja com os dizeres Sua intolerância é a minha resistência, reforça a contradição cultural do espaço: “Uma cidade onde você tem uma população candomblecista bastante grande em proporção ao resto, sendo que a maior parte da monumentalização histórica da cidade é católica”, enfatizou Tálisson.
Formados em Artes e Design pela Universidade Federal de Juíz de Fora, em 2009, a dupla iniciou o projeto ainda em Agosto de 2016, concluindo apenas em fevereiro de 2018. Nesse tempo, entraram em contato com os moradores locais, interagindo com qualquer pessoa, “do motorista até um diretor de biblioteca nacional”, explica o artista.
A narrativa visual das fotografias contam com um elemento essencial: a técnica da colagem. Muito utilizada pelo movimento cubista, no século XX, a técnica se caracteriza por sobrepor imagens de diversas texturas, formando um todo.
Em muitas imagens do livro, as construções coloniais são o fundo para imagens menores, coladas em recorte, que trazem aspectos da cultura africana. O objetivo é criar a ideia de "camadas de hierarquização da própria cultura", representando as relações conflituosas e não harmônicas do período colonial e dos dias atuais.
“A gente usa alguns elementos do patrimônio oficial de Salvador, por exemplo, de Luanda, e a gente insere alguns elementos que são importantes para pensar a cultura brasileira e africana no geral, ou para pensar processos recentes de mobilização, de resistência”, explica Tálisson.
Para perceber as imagens, é preciso ainda um esforço. Elas quase se perdem no meio da textura do patrimônio. Tudo proposital, para provocar um “esforço muito grande de reflexão, de uma revisão da historiografia e politização das narrativas sobre o patrimônio”, ressalta.