Na terça-feira (01/05), o Banco Central do Brasil precisou emitir um comunicado oficial. Para desmentir uma notícia falsa em circulação na internet, a principal instituição financeira do País veio a público garantir que cédulas carimbadas com o desenho do rosto do ex-presidente e as inscrições “Lula Livre” continuariam válidas.
O boato dizia que a rede bancária estaria proibida de receber as cédulas. O dinheiro, carimbado, faz parte da ação de um coletivo de artistas contemporâneos divididos entre São Paulo e Curitiba, onde Lula está preso sob acusação de corrupção pela Operação Lava Jato, como uma estratégia estética pela soltura do ex-presidente em cuja inocência acreditam. Anônimo, o grupo se auto-intitula “Lula Livre”.
“Na verdade, somos mais que um coletivo de artistas, somos um coletivo de pessoas pela democracia”, diz um dos artistas do grupo, que conversou com a reportagem do JC sob a condição de manter o anonimato. Ele justifica: “Em primeiro lugar, não queremos assinatura ou autoralidade deste trabalho, para que ninguém o capitalize ou lucre individualmente com ele. A estratégia é que a ação viralize mesmo, de forma anônima”, ele diz.
Há outra razão, mais pragmática, para que o grupo não assuma a autoria dos carimbos. Pela legislação brasileira, o valor indicado na cédula de dinheiro é de propriedade de seu dono, mas o papel-moeda em si é patrimônio da União. Danificar, de alguma forma, dinheiro é algo possível de ser punido como crime no Brasil.
“É um crime, que pode ser até arte, mas é crime”, afirma o jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. “Quem repassa pode alegar que recebeu a cédula assim, mas se alguém for identificado danificando uma cédula pode ser processado. É pouco provável que vá para cadeia, por ser um crime de menor potencial ofensivo, mas esse artista pode ser punido com multa ou trabalho comunitário, por exemplo. Um procurador do Ministério Público favorável a Lula pode achar que não houve crime e não acatar a denúncia, mas um contrário, pode acatar”, diz o jurista, com uma sugestão. “Ao chegar ao Banco Central, essas cédulas serão recolhidas para substituição e o contribuinte terá que pagar por isso. Se o discurso é artístico, por que esses artistas não fazem cópia tipo xerox de cédulas e escrevem nelas o que quiserem? Com cópias, não haveria crime”.
A ação dos artistas no Brasil de hoje não é, contudo, inédita. Forma contundente da relação simbólica entre arte, dinheiro e política, a estratégia de performance social começa com a obra de Cildo Meireles. Com obras que hoje podem chegar ao valor de mais de dois milhões de dólares nos principais leilões internacionais, o que o coloca no seletíssimo time de brasileiros supervalorizados no mercado internacional, Meireles ficou conhecido pela ferocidade poética de seu discurso artístico durante a ditadura militar.
Entre 1970 e 1975, ele criou o projeto Inserções em Circuitos Ideológicos. Numa série de trabalhos, tirava cédulas de dinheiro e garrafas de Coca-cola de seus ambientes originais de circulação e neles imprimia frases “subversivas”. Entre elas, “Quem matou Herzog?”. A ideia era fazer a provocação escapar do controle da censura e chegar a um número incalculável de pessoas. Ou seja, objetos banais ressignificados como plataformas de um discurso Curiosamente, Meireles tem se manifestado favoravelmente à prisão de Lula. Atualmente, na Argentina e na Venezuela, cédulas de dinheiro têm sido impressas com frases de protesto contra a política econômica ou a falta de liberdade de expressão.
“O gesto inaugural de Cildo consistia em fazer a mensagem circular fora dos circuitos protegidos da arte, baseado inclusive no hábito frequente na época de se usar cédulas para correntes religiosas e até de amor. É o mesmo que parece guiar esses artistas de agora, que também não parecem estar muito preocupados com se o que fazem é arte ou não”, discorre a curadora Cristiana Tejo.