A história da arte não é apenas a trajetória dos artistas e suas poéticas visuais – também é, e sobretudo, embora menos visível, a história dos agentes e instituições capazes de legitimá-los. Quando apertava os pitos de seus tubos de spray por Nova Iorque, aos 19 anos, Jean-Michel Basquiat, por exemplo, mal sabia como conseguiria dinheiro para uma nova lata. Aos 24, depois de expor na galeria de Annina Nosei, cada pintura sua custava cerca de US$ 25 mil. De um discurso, traços e cores já bem integrados à paisagem urbana do Recife, o pernambucano nascido em Carpina Julio César Freitas faz a transição. Conhecido artisticamente apenas como Jota Zer0ff, assina uma grande individual na Galeria Janete Costa, no Parque dona Lindu, em Boa Viagem.
"Um dos primeiros desejos do artista que está na rua é conseguir se inserir também nos espaços formais. Sonho com essa exposição desde 2012”, diz Zer0ff, que, investido de curador, fez ele mesmo a seleção das 24 obras, distribuídas na Janete Costa sob um uma bem-cuidada expografia de Carlito Person, diretor da galeria.
A exposição chama-se Transistor. “Ao intitular este conjunto de trabalhos como Transistor, Zer0ff se apropria de um termo relacionado à física, mas que – especialmente em tempos de comunicação acelerada – traz a potência de amplificação de significados que a arte contém”, analisa a antropóloga Nicole Costa, diretora de conteúdo do Paço do Frevo, que dedicou sua tese de doutorado à arte urbana e assina o texto de apresentação da exposição. “Nessa exposição estou amplificando plataformas, evoluindo nos materiais. Batizei de Transistor porque traduz a amplitude do meu trabalho, além de remeter à transição”, diz o artista.
Na mostra, estão temas recorrentes na poética de Zer0ff, como o humor subjacente aos seres contemporâneos, inscritos em dilemas como a (incomunicabilidade. “Tenho sempre essa relação entre o dentro e o fora, essa comunicação com outros mundos”, diz ele. Influenciadas pelas HQs dos anos 1990, como os mangás japoneses e expressões visuais do cyberpunk, as telas do pernambucano parecem exprimir diálogos – ainda que palavras não ocupem os campos visuais. As narrativas estão subjacentes aos traços de coloridos definidos no amplo investimento em personagens - alguns deles desenhados como se em portraits pop.
Um dos trabalhos da mostra traz a figura de um homem jovem, nitidamente urbano, preso num cubo de vidro em que água em acúmulo ameaça afogá-lo. Sobre sua cabeça, pesa uma bigorna. Mas a principal preocupação do personagem parece ser engolir as informações que lhe chegam pelo celular na palma da mão.
A mudança da plataforma, da rua para a galeria, não significa, contudo, adaptação de vocabulário. Os desenhos e pinturas permanecem nas mesmas dimensões. Seu grafite, mesmo público, não é de grandes dimensões. Respeita a escala humana. “Gosto de trabalhar no nível do olho, para que as pessoas se aproximem. Quero uma arte intimista”, diz o carpinense que começou a desenhar ainda aos oito anos de idade, de olhos sempre abertos aos desenhos da TV e já teve uma pequena individual na antiga Casa do Cachorro Preto, hoje chamada de Casa Balea, galeria frequentada por novos artistas no Sítio Histórico de Olinda.
Interessado em dar pausas no “contrafluxo” autômato da urbe, resolveu, na adolescência, tingir o concreto desbotado do Recife com suas cores. Mais do que cor, demarcar a ampliação de um discurso. “A rua é a galeria mais democrática de expor e de alcançar o público mais amplo, não apenas os que estão acostumados ao circuito de museus e galerias. É o lugar em que sua obra pode ser vista pelo gari e pelo empresário”, diz ele que, numa forma de, ironicamente, questionar os sistemas de arte ao qual pertence adotou a alcunha de ZerOff (junção das palavras zero e off) como sugestão de não-pertencimento ou não total integração ao mainstream.
No Recife (e a inclusão desta exposição na principal galeria pública da cidade é uma prova), o grafite é considerado política pública. Na lateral da sede da Prefeitura do Recife, um grande painel de 77 metros de altura com 8,20 de largura traz um grafite com a face, algo cubista, de Luiz Gonzaga assinado pelo paulistano Eduardo Kobra. Em 2017, a prefeitura mobilizou seis artistas, Karina Agra, Coletivo Vacilante, Bozó Bacamarte, Galo de Souza Manoel Quitério, além de Zer0ff, para criar, a produção da Nuvem, painéis com 25 metros quadrados para decorar o Carnaval da cidade. As obras dessa exposição, aliás, serão posteriormente comercializadas pela Nuvem Galeria (www.novembro@gmail.com).
Transistor - Exposição de Jota Zer0ff. De 10 de novembro a 24 de fevereiro. Galeria Janete Costa, Parque Dona Lindu. Entrada gratuita.