Aos 92 anos, Francisco Brennand produz com a mesma paixão febril dos tempos de mocidade. Em 2019, foram 100 quadros pintados. O desconforto das muitas horas sentado e concentrado é mitigado pela certeza – ou, melhor, necessidade – de transportar para o mundo exterior o turbilhão que se passa em seu núcleo criativo. Em exposição na galeria Espaço Brennand, em Boa Viagem, estão os quadros mais recentes – e inéditos – produzidos por ele. A visita ao espaço começa com a visão enigmática de três figuras em sequência: é o tríptico intitulado com o nome de cada uma delas: Lear, Argonauta, Caim Expostos.
Em 1949, quando embarcou para Paris a bordo do navio R.M.S. Alcântara, tendo como companhia um exemplar do livro Guerra e Paz (Leon Tolstoi) e a esposa Deborah, Francisco iniciava a sua jornada do herói. Ia em busca de si mesmo e de sua arte, uma fase que o definiria como a força da natureza que é, para sempre. Na memória, a frase que lhe segue até hoje, dita por um tio: “A vida não é literatura. É algo bem mais violento e irreparável”.
O tríptico em exibição no Espaço Brennand resume a violência que faz da vida – a eterna jornada do herói – um material de difícil manejo. Nas figuras arquetípicas – o personagem Rei Lear, da tragédia shakespeariana, emboscado em uma teia de traições; o argonauta, tripulante da nau Argo que sai em busca do Velo de Ouro (a lã de ouro do carneiro alado Crisómalo) e o fratricida Caim, personagem do Antigo Testamento da Bíblia – está o testemunho daquilo ao qual já fomos exposto ou expusemos alguém, às claras, como situação encerrada. E também o que está ainda por ser revelado, aquilo que escondemos, não apenas para quem nos assiste, mas até para nós mesmos. “Dificilmente um artista não se sente o centro do mundo, portanto, ele é o herói que tudo comanda. O que não quer dizer que não exista algo que fique à mercê de uma corrente que flui no Universo e que independe de nossa vontade e escolha”, resume o artista. “Lear, o argonauta e Caim querem justiça, por isso se expõem”.
É um privilégio poder ver Francisco Brennand acionar as alavancas simbólicas que fazem mover o seu desenho, seja para compor o plano de um quadro ou a tridimensionalidade de sua escultura. Uma coisa é certa: sua arte nunca é unidimensional, mas revestida por camadas que são impossíveis de serem separadas com precisão, tal a fluidez – e rapidez – com que transcorrem suas sinapses. E isso garante ao espectador um prazer extra que é o de tentar formular sua própria imersão na narrativa, sem, contudo, deixar de ser tentado a seguir a isca jogada pelo mestre: a erudição e carga emotiva que seus trabalhos oferecem. Se construíssemos um linha temporal feita com os quadros assinados por F.B., desde o início de sua carreira até os dias atuais, teríamos diante de nós um viajante que teve acesso íntimo a um mundo tão sedutor quanto hipnotizante.
Junto com os quadros (e uma escultura), Francisco Brennand traz para a galeria o espírito da frase em latim Immotus Nec Iners, que está gravada em cerâmica na entrada de sua oficina, e que significa: “Imóvel, mas não inerte”. Este é o convite para adentrarmos na segunda fase da exibição das obras assinadas no ano que está prestes a se encerrar. Na série Delírios, a sequência de quadros é explicada pelo próprio autor: “Uma enorme bule irritadiço quebra a sua mobilidade e começa sua caminhada em busca de vítimas”. Assim tem início a sequência em que objetos inanimados, de formas mais ou menos definidas, dançam sobre as telas como se insuflados por um espírito ancestral. É um Brennand liberto de amarras materiais. Convicto de que “não existe artista isolado no mundo e, portanto, não existe artista secreto”.