Ervas e hortaliças vulcânicas de Fernando de Noronha

Na ilha onde um prato de salada ainda é luxo, um grupo de agricultores tradicionais começa a fazer uma pequena revolução na terra
Bruno Albertim
Publicado em 13/11/2016 às 12:39
Na ilha onde um prato de salada ainda é luxo, um grupo de agricultores tradicionais começa a fazer uma pequena revolução na terra Foto: Ney Anderson / Divulgação


FERNANDO DE NORONHA - Há mais de trinta anos na ilha, Maria de Lurdes Sampaio não esboça os olhares exclamativos tão comuns nos rostos dos turistas surpresos por cada ângulo de Noronha. Mas seus olhos ganham um brilho indisfarçável quando ela chega a um quase descampado no bairro do Boldró. Ali, algumas poucas árvores em recuperação emolduram uma pequena revolução agrícola, gastronômica e, porque não, cultural. Pequeníssima. Os primeiros galhinhos de hortaliças brotando na terra sinalizam: a ilha mais cobiçada do Brasil está voltando a ter agricultura.

Parece pouco para quem vive na realidade urbana a poucos metros de um horti-fruti ou de uma feirinha orgânica onde a classe média renova seu pacto semanal de saúde alimentar. Mas numa ilha onde um prato de salada nos restaurantes cheios de turistas endinheirados pode custar o mesmo que um filé, verduras e legumes são verdadeiros luxos. Que, além de satisfazer paladares forasteiros, estão fazendo alguns antigos moradores se reencontrar com seus antigos padrões culturais. “A minha vida toda, eu lidei com a terra. Plantava. É o que mais sinto falta desde que vim morar aqui”, diz José Carlos Gomes, 43 anos, o Bigode, residente da ilha desde 2007, quando deixou Paudalho pra trabalhar como operário das obras de saneamento e água da Compesa. Se pode pescar eventualmente, Bigode sente ainda falta de um bom maço de coentro pra temperar seu pirão. “O quilo de macaxeira aqui é quase R$ 10. Lá, no continente, é menos de R$ 2. Um simples coentro pode custar o mesmo preço. Comprei outro dia porque precisava fazer um peixe de coco, ele diz”, confirmando aquela velha assertiva de Câmara Cascudo, o historiador da alimentação brasileira, de que “o paladar indica no homem o que ele tem de mais pátrio”.

Bigode tem uma pequena roça - de coentro, macaxeira, jerimum...Uma pequena mudança em sua vida possível desde que, há três meses, Lurdes Sampaio juntou umas duas dezenas de agricultores, arou os cerca de 15 hectares disponíveis para plantio em toda ilha e assumiu a coordenação do Noronha Terra, a entidade que os une e organiza. Bióloga de formação e chef de cozinha mediterrânea por vocação, ela vislumbra a possibilidade voltar a cozinhar com as próprias ervas e hortaliças.

“Há mais de trinta anos, quando eu cheguei, havia ainda agricultura. Mas foi abandonada”, ela diz. O cultivo da terra foi sumindo progressivamente conforme a ilha, nos anos 1990, ia se convertendo no principal talismã turístico do Brasil. “A gente não vê nenhum jovem trabalhando na Agricultura. Já ouvi eles falarem: por que eu vou deixar de trabalhar na praia vendo bunda e peito bonito pra meter a mão em coco de vaca?”.

Embora o administrador de Fernando de Noronha, Luís Eduardo Antunes, incentive a volta da agricultura, ele mesmo é cético sobre uma adesão mais maciça. “O jovem passa o final de semana guiando turistas e ganha quase um salário mínimo. Não parece muito proveitoso trocar isso pela terra”, comenta. Mas a adesão recente à terra vem justamente de quem tem nela algo da personalidade já estruturada. “Quando eu era criança, 70% dessa ilha era plantação, tinha até algodão, alface, coentro, cebolinha, repolho. Com o parque (nacional marinho), a plantação foi removida”, diz o noronhense Ivo Barbosa, 52, funcionário da administração e, de novo, agricultor. Voltou a plantar alface, cebolinha, repolho, beterraba e coentro. O associativismo o incentivou. “Antes, a gente plantava um leirão de coentro, vinha um e roubava. Dava muita tristeza. Agora, um olha a roça do outro”. A terra vem respondendo bem ao carinho recebido. “O solo é complexo, porque é de origem vulcânica, com muitos nutrientes e, além do mais, como há muitas aves aqui, o solo ganha a cobertura do gantu das fezes, que o protege”, comenta a bióloga. Sem aditivos sintéticos, as roças recebem a proteção natural de um composto à base de cravo, óleo de nim e canela. As plantas vão respondendo rapidamente. “Há uns cinco anos, quando houve a última colheita, tiramos 1,8 mil quilos de jerimum”, comenta ela. Em três meses, se não houver imprevistos, o atual plantio vira colheita. E, em vez de comprar o que chega de barcos do continente, eles sonham com a possibilidade de exportar para o Recife verdurinhas com o selo-quase-grife: “Agricultura orgânica e vulcânica da ilha de Fernando de Noronha”.

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