Chocolateria: cacau da Bahia faz um retorno luxuoso

Depois da praga da vassoura de bruxa que devastou a região, sul da Bahia ressurge no mapa mundial do chocolate de alto padrão
Bruno Albertim
Publicado em 05/08/2018 às 4:21
Depois da praga da vassoura de bruxa que devastou a região, sul da Bahia ressurge no mapa mundial do chocolate de alto padrão Foto: Ana Lee / Festival de Chocolate da Bahia


ILHÉUS (BA) – Ele não pode mesmo ser considerado um cliente comum: dono de uma receita anual de mais de 90 milhões de euros garantida por mais de 20 restaurantes de luxo fincados ao redor do globo, o francês Alain Ducasse tem, pragmaticamente, o planeta à disposição. Fornecedores dariam um dedo de menor importância para ter seus produtos selecionados pela lista planetária de compras de monsieur Ducasse, disposto sempre a vencer quaisquer latitudes para usar, com exclusividade, os melhores insumos da terra.

Quando, há dois anos, o papa francês da gastronomia resolveu lançar uma linha de chocolates, veio ao Brasil. É de Ilhéus, no Sul da Bahia, que sai o cacau usado na Le Chocolat, meca absoluta da chocolateria de alto padrão na França. “Tenho muitos fornecedores de cacau no mundo. Todos excelentes. Mas minha relação com o cacau baiano é especial. Ele tem uma delicadeza de gosto, que só descobri quando, há dois anos, estive no Brasil, visitei as plantações e interagi com quem coloca toda a paixão nessa cultura particular”, disse Ducasse. Não por acaso. Depois de anos de devastação e ostracismo, a Bahia desponta como um dos poucos e celebrados terroirs de chocolate de origem do globo. De fato, um renascimento.

No finalzinho do segundo tempo da década de 1980 (22 de maio de 1989, para ser preciso), foi descoberto o primeiro foco de infecção no cacau do sul da Bahia. Em menos de três anos, a praga da vassoura de bruxa devastou plantações e, de quebra, a Bahia arquetípica que forjou os barões e gabrielas descritos na obra de Jorge Amado. O cacau, responsável até ali por até 60% da economia baiana, sumiu. Muita depressão e empobrecimento depois, a cultura do cacau – e do chocolate – volta a brilhar na Bahia.

“Em 2009, quando a feira começou, havia apenas uma marca de chocolate, bem caseira. Hoje são 78 marcas de chocolate artesanal, premium, cujos preços podem custar até 400% a mais do que o do simples cacau commodity”, diz o produtor Marcos Lessa, dono na marca Chor, de apenas um ano e meio, e idealizador do Salão Internacional do Chocolate e Cacau, inspirado nos similares europeus e já o maior evento do tipo no Brasil. Na penúltima semana de junho, o salão baiano reuniu dezenas de marcas, centenas de degustações, um público total de mais de 65 mil pessoas e, segundo os organizadores, R$ 15 milhões gerados em negócios. “Todas com chocolate de alto teor de concentração de cacau”, diz ele, informando a mudança de paradigmas culturais de gosto que se dá no Brasil a partir do Sul da Bahia.

DA AMÊNDOA À BARRA

Embora haja um projeto de lei, de autoria da deputada federal Jandira Feghali, para elevar o percentual mínimo para 35%, a legislação brasileira permite que produtos com módicos 25% de cacau sejam considerados chocolate. A tendência, verificada neste último Salão do Chocolate da Bahia, é que o Brasil redescubra o que se entende por chocolate: os de maior concentração (50%, pelo menos), saborizados e acrescidos de nibs (as amêndoas torradas do próprio cacau) avançam no mercado premium.
“O Brasil não conheceu outro tipo de chocolate se não o ao leite. Que deixou de ser ‘chocolate’ e virou ‘doce’. Na prática, a grande indústria vende leite, manteiga e gordura. Não mais o grande produto que as civilizações pre-colombianas revelaram para a Europa”, comenta Lessa. “Houve muita resistência, mas hoje a grande indústria já eleva seus percentuais de concentração de cacau”, diz ele, sobre a vantagem, além de cultural, econômica, de os próprios produtores torrarem suas amêndoas de cacau para produzir o próprio chocolate. “O quilo do cacau custa dez. O do chocolate, R$ 200”.

A história atual começou há dez anos, quando um grupo de cacauicultores baianos travou conhecimento com o movimento bean to bar, criado na Califórnia, preconizando a nova era: o chocolate de assinatura deveria ser feito da amêndoa (bean) para a barra, num controle mais holístico de todo o processo. “Aqui, ampliamos o conceito para o tree to bar, ou seja, da árvore para a barra”, diz Ricardo Mororó, que integrou a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) por cerca de quatro décadas e o hoje é o gerente geral da fazenda Riachuelo, origem da mais conhecida marca de chocolate de origem baiano no mercado brasileiro. A Mendoá surgiu há cerca de dez anos, com uma história que se confunde com a do terroir. Inicialmente, o chocolate era feito laboratorialmente para se testar a performance do cacau quando processado. Tamanha a qualidade, o chocolate da marca se impôs como produto. Com três linhas de produtos, (a de chocolate ao leite tem pelo menos 40% de concentração de cacau), a Mendoá converte 10% das 60 mil arrobas anuais de cacau (o grande resto é vendido como commodity) em chocolate de origem, vendido em mercados da Europa e do Brasil – inclusive nas principais delicatessens do Recife, onde uma barra de 80 gramas custa cerca de R$ 20.

Pesquisa e tecnologia, aliás, como era de se esperar, estão por trás do sucesso do chocolate baiano. Quase todo o cacau convertido em chocolate tem suas amêndoas analisadas criteriosamente pelos laboratórios do Centro de Inovação do Cacau da Universidade Estadual de Santa Cruz, o primeiro do Brasil a fazer análise de cacau para chocolate, atendendo, sobretudo, os 83 municípios que fazem parte da Indicação Geográfica de Cacau no Sul da Bahia. “Chega de complexo de vira-latas, não queremos mais normas que nos nivelem por baixo, usando os defeitos máximos aceitáveis como limite. Queremos nivelar pelo mínimo de alta qualidade”, diz Cristiano Vilela, diretor do centro. “Em breve, como acontece com o vinho, teremos não apenas chocolate de origem, mas varietais de cacaus específicos”.

FAMA E FORTUNA

Tamanha fortuna o cacau gerou na Bahia, ainda estão presentes no imaginário local histórias de barões perdulários que tomavam o jatinho pela manhã para cortar o cabelo no Copacabana Palace e à noite estavam se regozijando no Bataclã – o antigo bordel imortalizado no romance Gabriela. Com a praga da vassoura, muitos se mataram e Ilhéus, que já foi uma espécie de Nice em pleno litoral baiano, virou a atual e caótica colcha urbana de retalhos, mal planejada, engarrafada, com uma orla empobrecida e novos prédios no meio do casario histórico tão arruinado quanto as antigas plantações. Hoje, alguns dos herdeiros dos antigos barões tocam fabriquetas de até um ou dois funcionários, de produção de fato artesanal, barra a barra.

Vários apostam em inovações de plantio e processamento. “Resolvemos plantar e fazer chocolates com varietais distintas de cacau, para desenvolver uma nova cultura de sabor e evitar a competição entre as plantas”, diz Pedro Caetano Magalhães Neto, dono da pequena e bem conceituada marca VAR, que, além de usar os cacaus dos tipos forasteiro e trinitário, usa também, com exclusividade, o catongo, um cacau de amêndoas esbranquiçadas responsáveis por um chocolate mais suave, mais claro – parece um ao leite, mesmo não sendo. “Queremos, aos poucos, mudar a história do chocolate no Brasil”, ele diz. Com pouco açúcar, gordura e saborizantes agregados, e muito cacau, eles parecem ter começado – com pressa – essa mudança.
O repórter viajou a convite do festival.

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