Geralda Cardoso é a rainha inconteste da gastronomia no Morro da Conceição, mas não era este o plano quando começou, há 20 anos. O imóvel que ocupa desde então fica a poucos metros do santuário em homenagem à outra soberana, esta, de natureza celestial.
No cardápio de duas décadas atrás, em vez de alimentos e bebidas, havia artigos religiosos, suvenires que os visitantes compravam como prova de devoção. Durante os dias de festa no Morro, a procura era grande, mas escasseava ao longo do ano.
Decidiu, então, vender espetinho numa bancada que colocava na calçada, como forma de aumentar a renda familiar. “Naquela época, era diferente por aqui, perigoso, de vez em quando um tiroteio”, recorda-se.
Não vendia bebida alcoólica. Os clientes foram chegando, atraídos pelo tempero da dona da casa, e pedindo uma cervejinha para acompanhar. De uma grade, passou para cinco.
Os frequentadores queriam, então, provar mais quitutes. Pensou, pensou e resolveu preparar a iguaria que julgava ser seu ponto de destaque na arte culinária: a cabidela.
Começou também com apenas uma galinha, novamente gerando um crescimento exponencial até ser o que é hoje: referência: “Eu me tornei a Dona Geralda, uma pessoa com nome na praça”, admite.
A trajetória que levou Geralda aos pés da santa é pontuada por fé. Fé em si mesma, na boa vontade dos seres humanos e, principalmente, no divino.
Nascida em Surubim, Agreste pernambucano, fugiu de casa aos 12 anos de idade no intuito de encontrar a mãe, que, separada do pai, havia tomado o rumo da capital e, pelo que ela sabia, trabalhava no lar de uma família em Olinda, no Grande Recife.
Saiu escondida, levando apenas um bilhete cuja mensagem pedia, a quem quer que encontrasse a portadora do papelucho, que a ajudasse a chegar ao local pretendido.
Foi assim que, ao desembarcar na rodoviária, o entregou a um policial que, por sua vez, o deu a um motorista de ônibus que a fez descer nas imediações do endereço descrito.
Andou o dia todo, a tarde chegou com ela exaurida pelo calor, fome e, principalmente, medo de dormir na rua.
Finalmente, a menina, que trabalhava na roça e, do mundo, só conhecia o seu quadrilátero, conseguiu acertar a porta e tocar a campainha. Severina, a mãe, já não trabalhava ali, e ninguém sabia informar para onde havia ido.
Já fazia dois anos que não a via, e passariam mais seis meses para que isso acontecesse.
“Manda a menina entrar”, disse a dona da casa, que ofereceu três coisas: um vestido para trocar, já que a filha tinha quase a mesma idade que a da migrante, um prato de comida e um emprego – havia bebê novo e precisava de alguém que o olhasse no berço. Fez mais: colocou anúncio no rádio para encontrar a mãe da pequena Geralda, escreveu para o pai tranquilizando-o sobre a segurança da filha, pagou-lhe os estudos num colégio de freiras. “Saí de lá para casar. Ela foi uma mãe para mim”, declara. O bebê que ela embalou no berço hoje tem 48 anos; Geralda, 60.
“Uma mãe que não me abandona”, assim Geralda define sua relação com a santa de sua devoção. Foi para Nossa Senhora da Conceição que a comerciante pediu permissão quando decidiu abrir o negócio do espetinho.
Pediu-lhe um sinal que indicasse ser a decisão acertada, mas, mesmo tendo se adiantado e comprado material, como a aprovação não veio, ela devolveu tudo ao fornecedor, que aceitou.
Para Geralda, a vida é feita de pequenos milagres orquestrados por intermédio da senhora vestida de azul e branco. Até que a hora chegou, e foi chegando: a autorização para o espetinho, a permissão para vender bebidas alcoólicas, o consentimento para encerrar o comércio de artigos religiosos e iniciar o que hoje é o Bar da Geralda.
Mais recentemente, há três anos, veio o aceno positivo para que abrisse a casa também durante os festejos, porque, até então, as portas permaneciam cerradas.
Mas fez uma promessa: assim que os fogos ecoassem avisando sobre a chegada da santa, ela fecharia a grade e entregaria a conta a quem estivesse por lá.
“As pessoas podem terminar suas refeições tranquilamente, mas nada alcoólico sai mais”, avisa. “Me sinto tão orgulhosa de saber que sou uma mulher que respeita os meus limites com Nossa Senhora”, conclui.
Geralda venceu um câncer de mama há nove anos. E, também aí, vê a mão de Conceição sobre sua cabeça. “O pior momento da minha vida não foi o diagnóstico, mas o tratamento”, confessa, não sem verter lágrimas.
“Lutei, com unhas e dentes. A quimioterapia me enfraquecia, a cirurgia me deixou sem força num braço, mas não abandonei o fogão nenhuma vez sequer. Eu fiquei boa nas minhas panelas, com fé na minha santa”, resume.
A ligação de Geralda com a culinária nasceu de forma similar àquela vivenciada por suas vizinhas, mulheres que preparam alimentos para a família e para atender ao público externo: no lar em que prestou serviços por quase duas décadas.
No mesmo núcleo familiar, deixou de ser menina, atravessou a adolescência e tornou-se mulher. Aprendeu a fazer de tudo: de forno a fogão, como se diz.
Dedicou-se com gosto às tarefas, colecionava cadernos de receitas, aprendeu a distinguir a matéria-prima por sua qualidade, familiarizou-se com equipamentos e apetrechos, incorporou o saber de tal forma que ele passou a ser parte dela
“Não meço quantidade em receitas”. Ela tempera como se sua mão fosse conduzida pela intuição. Também na cozinha existe um tempo para tudo: para estancar o acréscimo de sal, para dosar o cominho; para abaixar o fogo e para extingui-lo. Fácil para quem sempre soube ouvir e esperar.
Embora seja afamado pela galinha de cabidela, o Bar da Geralda é muito mais: bode guisado, peixe frito, rabada com pirão, costela guisada, sarapatel de galinha, marisco de coco, carne de sol. “Invisto muito no meu negócio. Gero empregos, priorizo o comércio local para comprar o que necessito”.
Quando, em 2006, ganhou o Festival Roda de Boteco, descreve a sensação como “a de uma criança que ganhou uma boneca”. Aquela criança que saiu em busca da mãe e encontrou seu destino não sai de dentro dela.