Na cena inicial, uma figura espetacular irrompe pela porta, num contra-luz que torna impossível distinguir detalhes que vão além de sua silhueta. Ao fundo, ouvimos, apenas sugerida com instrumental, a canção-título Rocketman. Quando a magia, construída por câmera lenta, enquadramento, iluminação e fascínio se desfaz, permite-nos ver a forma como ela é. Um homem num bizarro traje alaranjado, coberto por lantejoulas que formam chamas vermelhas, tendo capuz com chifres e um par de asas rubras como acessórios.
Melhor alegoria não poderia haver para o momento em que começamos a acompanhar a tentativa de retorno por parte de um homem que subiu aos céus como um foguete. Tal qual a representação do diabo na carta do Tarot – na qual os humanos estão aprisionados por correntes aparentemente fáceis de quebrar –, vemos um Elton John escravizado pelas drogas (“Já provei todas já inventadas pelo homem”), pela busca do amor onde o amor nunca esteve, pelos buracos deixados por uma infância onde sobraram noções bizarras de disciplina na mesma medida que abandono, de onde o afeto se ausentou.
É diante de um grupo de apoio para pessoas em situações similares que vemos desabar a persona e surgir o conteúdo. Neste momento, Reginald Kenneth Dwight, o menino gorducho de um subúrbio londrino, se entrelaça com Elton Hercules John, estrela de incomparável brilho e resiliência numa indústria conhecida por mastigar e cuspir. Um precisou morrer para o outro nascer, e assim sucessivamente. E, ainda assim, ele permanece de pé (I’m Still Standing, outra canção que encapsula bem de que material é feito um ser como Elton John).
O filme dirigido por Dexter Fletcher (o mesmo que concluiu Bohemian Rhapsody depois da saída de Bryan Singer) é uma irresistível biografia musicada, uma espécie de ópera-rock, na qual as cores saturadas, as canções imortais impecavelmente salpicadas com coreografias oportunas e vigorosas (em alguns momentos lembram Grease, noutros Tommy, ou videoclipes canônicos) e desempenhos magistrais prendem os espectador à cadeira com grilhões, estes sim, impossíveis de quebrar. A começar pelo ator que interpreta o ídolo de multidões em todo o planeta. A exemplo de Rami Male, para citar novamente Bohemian Rhapsody, que personificou de maneira sobrenatural Freddy Mercury, a performance de Taron Egerton como Elton John é magistral.
A escolha de Rocket Man como canção-título é emblemática, uma vez que a escalada do garoto introvertido ao jovem adulto que mesmeriza audiências tem o mesmo arco narrativo descrito nos versos: It’s lonely out in space/ On such a timeless flight (É solitário no espaço/ Em voo tão interminável). A subida e a descida. O sentido de solidão que acompanhou o pequeno Reggie desde a infância é o mesmo vivido por inúmeras crianças e jovens que se consideram (na verdade, são empurrados) à margem do padrão estabelecido como “normal” pela regras sociais. Sensibilidade ferida que não raras vezes se transforma num vazio difícil de ser preenchido.
No filme, o Elton adulto está em permanente dueto com Reggie, a criança e o jovem que ele foi, que seria uma réplica de tantos outros não tivesse um talento raro para transmutar absolutamente tudo para a linguagem musical. A música, aliás, foi uma dos poucos laços que o uniram a um pai ausente e nada amoroso. Talento inato que lhe garantiu, com pouca idade, uma bolsa de estudos na prestigiosa Royal Academy of Music. Um ouvido absoluto que foi capaz de reproduzir, sem jamais ter escutado antes, a música que a professora tocava no momento em que ele entrou na sala para ser testado.
E foi ao som deste dom que a vida lhe teceu um balé completo, como se coreografado por uma regência cósmica que pode ser interpretada como coincidência. Se Elton falava através das partituras para piano que ele mesmo compunha, Bernie Taupin, seu parceiro nas composições que estouraram numa sequência avassaladora, era quem nelas colocava os versos.
A cumplicidade entre ambos, aliás, articula os momentos mais ternos do filme. A aceitação tardia de sua homossexualidade, e a crença de que jamais seria propriamente amado por causa disso (nas palavras de sua mãe), foram algumas dessas algemas que o acorrentaram ao longo da vida. Quando encontrou a chave para abri-las, reencontrou também sua vocação para ser alguém único, um rocketman.