CINEMA

"Talvez, no futuro, seremos uma grande Toritama"

Cineasta pernambucano Marcelo Gomes fala sobre Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, que mostra como vivem e trabalhadores do moradores da cidade do Agreste do Estado, conhecida como a Capital do Jeans.

Ernesto Barros
Cadastrado por
Ernesto Barros
Publicado em 21/07/2019 às 11:33
Letícia Simões/Divulgação
Cineasta pernambucano Marcelo Gomes fala sobre Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, que mostra como vivem e trabalhadores do moradores da cidade do Agreste do Estado, conhecida como a Capital do Jeans. - FOTO: Letícia Simões/Divulgação
Leitura:

Desde sua estreia, em fevereiro passado, no Festival de Berlim, que o documentário pernambucano Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, em cartaz no Recife, vem espantando o público com o retrato das relações trabalhistas em Toritama, a Capital do Jeans, como é conhecida. Nesta entrevista, o cineasta fala do assombro ao rever a cidade do Agreste, sobre como o trabalho tomou conta da vida dos seus moradores e como Toritama se tornou um modelo que aponta para o pior futuro possível.

JORNAL DO COMMERCIO – Apesar de você ter estudado documentário na Inglaterra, seus longas sempre foram ficcionais, mas com forte sabor de realidade, como Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Você sentia que está devendo um filme documentário na sua carreira cinematográfica?

MARCELO GOMES – É o seguinte, eu acho que não é uma questão de dever um filme documentário. Quando passei por Toritama, vi aqueles outdoors, fiquei muito impressionado com aquela mudança de paisagem geográfica e fiquei sabendo da história das pessoas que vendiam tudo para brincar o carnaval. Achei que ali tinha um filme, orque era algo que eu não compreendia, aquela atitude, se era algo que tinha a ver com atravessar o capitalismo, um ato desesperador, um desejo de férias. Então, fui investigar isso porque eu gosto de fazer filmes sobre coisas que desconheço. Fui para Toritama e achei que só o documentário daria conta de construir esse afresco sobre a cidade. E foi por isso que optei pelo documentário. Eu acho que é o tema que diz a você se vai ser ficção ou documentário.

JC – Revisitar um livro, um filme ou mesmo uma paisagem, que tiveram importância no passado e na formação de uma pessoa, pode trazer muitas surpresas, já que o tempo é implacável ao provocar mudanças interiores e exteriores. No seu caso, as mudanças ocorridas no agreste pernambucano que você conheceu quando era muito jovem, especialmente em Toritama, lhe chocaram muito?

GOMES – As mudanças foram profundas na geografia, na paisagem, o rio de Toritama é poluído e também há poluição sonora na cidade. Existe um caos urbano muito grande, porque a cidade triplicou a sua população em menos de 20 anos. Foram mudanças radicais que aconteceram em Toritama. Em outras áreas do Agreste, a mudança foi menos radical, mas a de Toritama foi radical nesse sentido. Mas as coisas que me chocaram e me impressionaram – essas impressões, esse assombramento – estão no texto do filme. Agora, o que eu realmente estava querendo investir era na geografia humana, o que mudou nessas pessoas na forma de resgatar a memória, na forma de viver, na forma de sonhar, de como a família lida com o outro e no dia a dia deles. Era isso que me interessava e foi a partir desse tema que eu construí o filme.

JC – Você fica bastante exposto no filme, sentindo fisicamente o desconforto, o trabalho repetitivo e o barulho enervante das máquinas, até humanizar a situação com uma trilha sonora calma e relaxante. Você sentiu esse desconforto já nas filmagens ou foi na montagem que você caiu, digamos, na real?

GOMES – Cada vez que a gente ia para Toritama, eu voltava sempre muito triste, porque é uma situação muito dura, muito complexa. Muita gente que assiste ao filme diz quando ele acaba: “nossa, eu acabei ficando com um nó na cabeça”. Eu queria apresentar essa situação, esse afresco sobre Toritama, essas questões todas e não respondê-las. Queria deixar esse tempo para refletir e dissecar tudo aquilo. Eu acho que essa é a ideia do filme, não trazer respostas, mas, sim apresentar questões. E essas questões são muito duras. Toda vez que vinha para Toritama, era uma situação de muita tristeza, de muita dureza, mas, por outro lado, eu me emocionava muito com a resistência e a resiliência de seus moradores, personagens do filme que dão toda a beleza ao documentário.

EXERCÍCIO DE EMPATIA

JC – Assim como em quase todos os seus filmes, Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar é também uma procura pelo outro, um exercício de empatia. De certa forma, entretanto, os trabalhadores da indústria do jeans não tem tempo nem para eles mesmos. Que tipo de qualidade de vida o dinheiro que ganham tão arduamente está dando para eles?

GOMES – Com certeza. A empatia é um termo grego que quer dizer a relação com o sentimento do outro, estar a par do sentimento do outro, próximo do sentimento do outro e compartir o sentimento do outro. E, na verdade, todos os meus filmes são empáticos nesse sentido. Agora, a questão é o seguinte: uma indústria de jeans como aquela, que quebra etapas dentro do capitalismo, só pode ser instaurada num lugar onde tem poucas oportunidades para o trabalho, como é Agreste de Pernambuco, uma região pobre e com secas constantes, o jeans virou a única opção. Mas o que acontece é que aquelas pessoas que trabalham em facção e se dizem dona do seu próprio tempo, com sua autonomia e com sua liberdade, essa liberdade relativa, porque elas trabalham 10/12 horas por dia. Ganham dinheiro, é verdade, compram os bens do consumo, ou seja, aquela situação só acontece porque existe um apelo muito grande ao consumo, é o neoliberalismo promovendo essa ideia de autonomia e liberdade e sendo sustentada pela ideia de que vamos consumir mais e mais. Acho que eles tão consumindo mais, mas a reflexão que eu faço é que, quando você trabalha 14 horas por dia para consumir alguma coisa, aquelas 14 horas não voltam atrás, é um tempo que você perdeu para comprar algo e que esse objeto vai suprir suas necessidade. Mas será que a gente precisa realmente de tudo o que a gente consome? E aquele tempo que não volta atrás? E o que é que vai acontecer daqui a 20/30 anos com a vida dessas pessoas, quando elas se derem conta de que passaram a vida inteira trabalhando? A questão que levanto é a “a gente vive pra trabalhar, outra trabalha para viver”?

JC – Toritama apresenta uma situação trabalhista que há muito tempo já antecipava o modelo de desenvolvimento anunciado como solução para o crescimento do Brasil. Mas pelo que vemos no seu documentário, a situação dos trabalhadores é desumana, quase uma servidão voluntária. Você acha que essa situação pode ser um exemplo e se espalhar Brasil afora com outro tipo de indústria?

GOMES – Eu fico muito feliz que esse filme está sendo lançado nesse momento histórico do Brasil, em que se mudaram as leis trabalhistas de um ano para cá e foram retirados muitos direitos dos trabalhadores, a partir dessa nova lei trabalhista. Se extingue o Ministério do Trabalho, se estimula a ideia de trabalho autônomo, sem se pensar nas reais consequências dessa política. Eu acho que Toritama, como já existe essa política lá há muito tempo, mostra suas reais consequências, o que acontece na vida e saúde dessas pessoas, com essa reforma da previdência que estão pregando, que vai tirar mais direitos das pessoas, de suas aposentadorias. O que vai ser da vida dessas pessoas daqui a 20/25 anos? Esse é o momento para a gente refletir sobre essa política neoliberal, que começou lá nos anos 1980, com Margaret Thatcher e Ronald Rega, que falavam que “greed is good” (ganância é bom), vamos trabalhar, seja dono de você mesmo, trabalhe que você pode trabalhar mais e mais e mais. E aí vem o Carnaval como elemento transgressor, vem o Carnaval como resto de humanos que ficam nessas pessoas, porque as oito horas que você trabalha parece que é um tempo que não passa, mas as oito horas que você passou numa festa maravilhosa, o tempo voa. O tempo é algo relativo, na verdade, esse filme que era para ser sobre a questão do trabalho autônomo, também se transformou num filme existencialista, sobre o que a gente faz com nosso trabalho, nossas vidas e o que fazemos com o nosso tempo.

JC - Qual foi a reação das pessoas que assistiram ao filme fora do Brasil, como nas sessões do Festival de Berlim?

GOMES – Foi maravilhosa porque Toritama vive uma situação muito peculiar, mas que existe em todo canto, com essa uberização do mundo, essas novas tecnologias e as redes sociais, que fazem você trabalhar, trabalhar e trabalhar. Você responde a um e-mail às oito, às nove e às 10 da noite, não tem mais aquele trabalho de nove às cinco. O patrão, o empregado, você, na maioria das vezes, autônomo – patrão e empregado, algoz e vítima de você mesmo. Então, é um filme que tem um apelo universal. É muito curioso que, quando cheguei em Toritama, pensei que aquela realidade parecia muito com a Inglaterra do século 18/19, com a Revolução Industrial e aquelas condições de trabalho. De repente, me toquei que Toritama aponta para o futuro, com essa ideia neoliberal do trabalho autônomo. Talvez, no futuro, seremos uma grande Toritama.

Últimas notícias