O New York Times mediu a temperatura dessa frigideira lá no início. Sua lista dos mais vendidos, reflexo e indutor do que se lê pelo mundo, trazia, pela primeira vez, três títulos gastronômicos. Era o começo da década de 1990: espécie de beatnik dos fogões, João do Rio das panelas, o nova-iorquino Anthony Bourdain estava lá. Apenas Cozinha Confidencial, seu livro primeiro e mais conhecido, vendeu cerca de um milhão de exemplares quando do lançamento. Crônicas, mordiscadas sociológicas, imagismo, tudo misturado para pavimentar nosso interesse por comida que não apenas se come, mas se lê e se pensa. Ninguém escreveu sobre comida como Bourdain. Nem escreverá. Ontem, aos 61 anos, consagrado e venerado mundialmente, Bourdain morreu. Segundo o mesmo Times que o laureou há quase vinte anos, o chef se matou. Ao que parece, enforcado.
De Camocim a Lyon, Bourdain era conhecido por seu programa Sem Reservas, do canal fechado TLC, e também pelo Parts unknown, exibido pela sisuda CNN, em que, como um antropólogo bissexto, guloso, alterado e ligeiramente acima da sobriedade, apresentou as culinárias do mundo pelas entranhas. De um humor sempre aguçado e agucante, ácido, ele foi encontrado morto por um amigo, Éric Ripert, num quarto de hotel em Strasbourg, na França onde gravaria. "É com imensa tristeza que podemos confirmar a morte de nosso amigo e colega, Anthony Bourdain. Seu amor pelas grandes aventuras, novos amigos e comida e bebida requintadas e as incríveis viagens pelo mundo fizeram dele um contador de história único. Seus talentos sempre nos fizeram ficar admirados e vamos sentir muita falta dele. Nossos pensamentos e nossas preces estão com sua filha e famílias nesse momento incrivelmente difícil".
Ácido, curioso, bebarrão e agudo, Bourdain, o personagem midiático, se popularizou pela televisão, gerando algumas dezenas de clones pelo mundo. Mas o apresentador é cria direta do grande escritor que, desde o texto inaugural da New Yorker, se revelou. Em 1999, ele escreveu o artigo Não coma antes de ler isso. Militante de condições mais humanas de trabalho nas tórridas cozinhas de restaurantes com faturamentos superiores ao PIB de pequenas cidades, ele, sem a hipocrisia que mal limpamos no guardanapo de linho, revelava o que não víamos no prato.
Contava, por exemplo, casos de chefs afamados sem a mínima cerimônia de guarnecer o molho com uma boa cusparada antes de devolver o bife pra mesa de um banqueiro que acabara de mandar corrigir o ponto da carne. Depois do artigo, veio Cozinha Confidencial e os outros títulos que, como volumes magnetizantes de uma novela sem fim, eram a continuação do primeiro best-seller. Depois do livro, o programa A Cook´s Tour, no Food Network, e o No Reservations, no TLC, (disponível no Brasil também através do Netflix). Com o último, Bourdain ganhou dois prêmios Emmy.
Bourdain não foi o primeiro. Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Gertrude Stein, Leonardo da Vinci, Antonio Candido, Bill Buford, Ernest Hemingway, Proust, Alice B. Toklas, entre tantos outros, escreveram a partir de e sobre comida. Mas ninguém alcançou popularidade mundial tão grande com o universo como Bourdain.
Num futuro próximo, ele será reconhecido como o homem que pavimentou o caminho deste que é um dos segmentos mais constantes do mercado editorial no Ocidente. Antes raros, depois e por causa de Cozinha confidencial, mais de 200 mil títulos de literatura gastronômica foram lançados no mundo. Antes, não havia essa hoje vistosa seção nas grandes livrarias. Apenas livros de receitas com a intenção de catequizar domesticamente as futuras rainhas do lar.
Cronista brasileira de comida, autora de Não é sopa (2009), a paulistana Nina Horta assim o definiu: “Bourdain é um Jack Kerouac com a Larousse Gastronomique na mão. Em meio a nuvens de fumaça, quantidades importantes de cocaína, outras várias drogas e uma animada vida sexual, Bourdain mistura lembranças e comentários, com direitos a mafiosos e Frank Sinatra, muito derramamento de sangue, bebedeiras gigantescas, pitadas de suspense e uma alegria atordoante no ar”.
Bourdain nunca pôs os pês no Recife. Mas esteve no Brasil em 2007, onde gravou, se impressionou, destilou afetos e mal humores e, sobretudo, se embriagou de comidas e bebidas. De São Paulo, escreveu que “a cidade é feia à beça. Como se Los Angeles vomitasse em Nova Iorque”. Comeu sanduíche de mortadela no mercadão (com cerveja), testículos de boi fritos num bar da Lapa (com cerveja), tomou quatorze caipirinhas numa praia do litoral (com cerveja), comeu espetinho de gato na rua (com cerveja), churrasco depois de uma pelada (com hectolitros de cerveja), se deixou filmar terrivelmente ressacado e foi curar o porre (com vinho) num restaurante na Daslu, extinto templo do comércio de luxo paulistano. Sem pudores, o nova-iorquino mais francês de Manhattan terminava seus programas duas ou três doses acima do resto da humanidade.
Quando esteve na Bahia no final da primeira década deste milênio, o escritor ficou impressionado. Estrangeiro sem cerimônias, escreveu com o imagismo arquetípico de um Jorge Amado: “Comidas me alcançavam de todos as direções. Vendedores apregoavam acarajé, bolinhos, camarão seco em cones de papel, camarão fresco grelhado, tubos de papel contendo nozes com casca, ovos de codorna cozido e pastéis (...) Pecadores de lança, recém-saídos do mar, largavam nas mesas garoupas, vermelhos, caranguejos e lagostas ainda se mexendo, oferecendo-se para cozinhá-las nas barracas mais próximas. Sentado a poucos metros das mesas vizinhas, era quase inevitável participar das refeições dos outros (...) Mulheres de sais brancas e ornatos de cabeça fritavam pequenos bolinhos e despejavam cachaça dentro de cocos", descreveu Bourdain, para concluir que a Bahia foi uma das melhores etapas comestíveis da grande empreitada de escrever um do seus livros sobre peculiaridades culinárias do mundo: "(...) Comemos no Sorriso da Dadá, um lugar pequenino e muito amado no térreo de uma casa colonial plana e caiada. Seu outro restaurante, Tempero da Dadá, situado num bairro um pouco mais pesado, atrai os ricos e poderosos em suas limusines (sic); dizem que guarda-costas ficam alinhados na rua enquanto os ricos comem sua comida de estilo caseiro, maravilhosamente nobre e saborosa. Foi facilmente a melhor refeição de toda a aventura: despretensiosa, colorida,repleta de especiarias e sabor, irrestritamente africana, e tão aromática que nós quase desmaiamos esperando para comer. A comida foi servida em estilo familiar, e nós pedimos simplesmente tudo do menu: moquecas, piranha grelhada cozida em folhas de bananeira, acarajé, siri-mole, camarão apimentado, pitu, lagosta, tudo acompanhado por condimentos baianos onipresentes e inebriantes, farofa, caruru e vatapá. “Não me lembro de tudo, minha cabeça estava nadando em caipirinhas (feitas com caju fresco e cerveja Antartica e do frenesi de tentar colocar na boca toda aquela comida incrível)".
Na TV ou nos livros, Bourdain jamais escondeu seus problemas pregressos com a cocaína e outras drogas pesadas, entregando também alguns de seus colegas famosos. Mas, feliz com a namorada, a atriz italiana Asia Argento, dizia estar limpo há anos. Argumentava que não sobreviveria às doses cavalares dos anos rebeldes. Um ano atrás, em entrevista ao The Guardian, revelou, no entanto, sofrer de depressão. Como um guloso cronista das Grandes Navegações transportado para o século 21, Bourdain, rock star do fogão, antropólogo sem cátreda, ajudou a deixar o mundo generosamente menor.
Atriz americana, Mia Farrow, ontem, como tantos, sintetizou a perda: “Talvez todos nós quiséssemos sair com ele. Ele era tão legal, divertido, sincero e perspicaz. Ele nos apresentou a terras distantes e a pessoas com diferentes tradições. Sem nunca pregar, ele nos lembrou que nós, humanos, somos muito mais parecidos do que distantes. Obrigada, Anthony Bourdain.”. Agora, nos resta cozinhar.