A ideia que temos do tempo não pode escapar da sensação de que ele sofre uma distorção contínua, recorrente. Para notar isso, basta pensar na apreensão do passado, a memória, um espaço de desconexões e fragmentos que se contradizem. É por isso que alterar na ficção as características do espaço, esse dado mais sólido, sempre parece algo mais bizarro; mexer com o tempo é um recurso sutil, porque todos o manipulam na própria vida, ainda que sem perceber.
É sobre a imperfeição do tempo (aqui, não um traço da nossa incapacidade de pensá-lo, mas do próprio tempo mesmo) e do passado que a trilogia 1Q84, do escritor japonês Haruki Murakami, fala. A série começou a ser publicada no ano passado no Brasil pela Alfaguara e, agora, chega ao seu segundo volume. A tradução, direto do original, é assinada por Lica Hashimoto.
O livro é um caso cada vez mais raro de texto literário que recebe uma dupla credencial: a celebração crítica e também do público. A vendagem de 1Q84 tem sido de best-seller internacional, mas Murakami ainda coleciona uma das carreiras mais respeitadas entre os escritores orientais.
Em 1Q84, Murakami conta duas histórias paralelas. Uma é a de Aomame, uma jovem misteriosa que mora só e trabalha se vingando de homens que agrediram suas esposas. O primeiro livro começa com ela em um táxi, presa em um engarrafamento que a irá fazer perder um compromisso. Dentro do carro, a jovem ouve a Sinfonietta, de Janácek, e depois decide sair a pé para tentar pegar um metrô. Só então nota que os policiais japoneses usam um novo tipo de revólver, feito para situações mais violentas e tiroteios. Nada muito estranho, em aparência, mas a personagem se lembra de ter visto policiais recentemente com as pistolas antigas e não leu nada sobre a mudança nos jornais.
A outra narrativa gira em torno de Tengo, um professor de matemática e aspirante a escritor. Seu editor e mentor, Komatsu, passa para ele uma missão pouco ética: reescrever o livro de uma jovem de 17 anos, uma narrativa impactante, mas sem o devido trato na linguagem. O projeto é aliar a técnica de Tengo com a sinceridade da história da autora, Fukaeri, uma adolescente disléxica, bonita e de passado misterioso – ou seja, perfeita para atrair a atenção da mídia.
A trama é complexa e cada pequena alteração que o passado sofre – sem se saber o exato motivo – tem consequências no presente, algumas quase inocentes, como o surgimento de uma segunda lua, e outras cada vez mais sombrias. O ponto de encontro das duas narrativas é história de uma estranha comunidade alternativa, a Sakigake, instalada em uma província japonesa. O grupo nasceu com intuitos revolucionários, mas se dividiu há muito tempo em dois; um deles é dominado por radicais marxistas e o outro se torna uma organização religiosa – de onde saiu Fukaeri –, cada vez mais fechada ao público e que, sob uma aparência de inocência, esconde barbaridades.
Leia aqui o primeiro capítulo de 1Q84, livro 1.
Leia aqui o segundo capítulo de 1Q84, livro 2.
Leia a matéria completa no Jornal do Commercio desta quinta (11/4).