“Há dias – e pessoas – que se revelam mais poderosos do que bons momentos de ficção”, comenta um dos personagens do livro O céu não sabe dançar sozinho (Língua Geral), do escritor angolano Ondjaki. Suas narrativas, como ele costuma descrever, são contaminadas desses encontros poderosos, líricos, fantásticos. Atração da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) deste ano, o escritor, poeta, dramaturgo e roteirista vem pela segunda vez ao evento. Nesta passagem, encontra-se hoje, às 14h, com o escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli para falar sobre os paralelos entre roteiros e narrativas literárias, com mediação do escritor cearense radicado no Recife Sidney Rocha.
O céu não sabe dançar sozinho é uma obra singular, de contos que soam como um estranho registro de passagens por vários locais no mundo. Logo no primeiro texto, chamado Buenos Aires, o narrador conhece, ao acaso, um homem que procura o misterioso Oriegn Artse no sonho de outras pessoas. Em Laranjeiras, relata o encontro com o personagem de telenovelas Zeca Diabo em um hospital no Rio de Janeiro.
“Continuo a pensar que são as estórias que ditam o formato. Assim, dependendo do conteúdo, as letras pedem mais ou menos aspereza, mais ou menos coloquialidade, algo mais da prosa ou da poesia”, aponta o escritor, em entrevista para o JC. “Não sei se há harmonia na minha literatura; há momentos diferentes, como diferentes são os sentires e os dias. Estes vinte contos relembram-me isso, que é preciso liberdade e desprendimento na escrita.”
A estrutura do livro, dividida em locais, não o transforma em um diário de viagem ou coisa parecida. Às vezes, a referência geográfica se dá só no título. “No início comecei por associar lembranças a determinadas cidades. Depois, nalguns casos, já o conteúdo não condiz com a cidade que lhe dá título. Isto porque penso que há estórias nessas cidades que não fui eu que vivi, mas que alguém terá estado nessas situações”, indica o vencedor do Prêmio José Saramago de 2013, concedido ao romance Os transparentes. “E escrever é contar: não interessa se foi comigo, com um vizinho ou com um desconhecido. Por isso, esse narrador em primeira voz não sou eu. São vários. E eu também.”
Ondjaki, no entanto, diz que a viagem nem sempre é uma inspiração direta para escrita. Nem sempre um lugar desperta o desejo de escrever e, mesmo quando desperta, pode ser por meio do que ele chama de “diagonal poética da realidade”. “Gosto de memórias emprestadas, de sentir saudades do que nem vivi. Faz-me mais sentido assim, o mundo e as pessoas do mundo. Mas acho que viajar dá a conhecer culturas, pessoas e sensações. Mais tarde ou mais cedo, essas ‘acumulações poéticas’ dão frutos literários”, afirma. Para exemplificar isso, o Brasil é um bom parâmetro: Ondjaki mora no Rio de Janeiro há cinco anos, mas não vê ainda, conscientemente, a presença do País na sua prosa.
Essa escrita, fruto das memórias próprias e das incorporadas, naturalmente só se submete aos próprios instintos e projetos de Ondjaki. Formado em Sociologia, o escritor angolano prefere se definir como “deformado” pela graduação. “Isto é, apenas me licenciei nessa área, mas não me considero sociólogo. Nem acho que tivesse que partir da sociologia para escrever. Penso que faço ficção. Em todos os formatos – na poesia ou no teatro, movo-me na ficção”, pondera. “Nos meus livros, falo de qualquer tema que, na altura, me convença que dará uma boa estória. Essas estórias aparecem com algumas ideias subjacentes, sejam políticas ou outras. Mas eu penso que o ponto de partida deve ser literário. Entre sentires, desejos, medos e sonhos. O resto aparece, devagarinho.”
UM SÓ OFÍCIO
Apesar dos múltiplos interesses, que vão dos vários formatos literários até o teatro e o cinema, o autor comenta que passear por outras linguagens não o afasta do seu ofício preferido, a escrita. “Eu experimento outras artes para voltar à escrita. Estar aberto. Ler, ver, sentir, acho que a escrita é tudo isso. Os diálogos, em qualquer formato, em qualquer arte, fazem-nos crescer”, define o angolano.
Na mesa sobre o cinema, ele fala sobre essa interseção com a literatura, mesmo sem se considerar um grande perito na escrita para cinema. “Apenas gosto e apenas experimento. Não sou teórico. Acho que há pontos de contacto e acho que são coisas distintas. Há quem saiba fazer muito bem essa aproximação, e há quem não saiba fazê-la muito bem (é o meu caso)”, aponta, ainda que se considere aprendendo sobre a linguagem.
Um dos principais expoentes da literatura em português feita no África, Ondjaki identifica que a injustiça literária com o escritores do continente tem diminuído. “Há um interesse crescente, sim. Faltam sobretudo poetas, como (José) Craveirinha, (Eduardo) White, de Moçambique. Poderiam já ter feito grandes e boas antologias de poetas de Cabo Verde, Moçambique ou Angola. Os nomes maiores da literatura angolana, aqui refiro-me à poesia, ainda não se fazem presentes nas editoras brasileiras”, analisa. Cita ainda outros nomes, como Alda Lara, Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz, Henrique Abranches, David Mestre, Manuel Rui, Maria Alexandre Dáskalos e Arlindo Barbeitos, além de autores mais recentes, como Carlos Ferreira, João Maimona, Lopito Feijoó, José Luís Mendonça e Nok Nogueira. “Sobretudo a grande ausência é a de um autor que merecia ter no Brasil publicada a sua obra completa. Quem gosta de boa poesia sabe que esse autor se chama Ruy Duarte de Carvalho”, afirma.