Chico Buarque faz narrativa sobre meio-irmão desconhecido

Na sua quinta narrativa longa, intitulada O irmão alemão, o escritor brinca com semelhanças entre personagens e sua vida
Diogo Guedes
Publicado em 02/12/2014 às 5:13
Na sua quinta narrativa longa, intitulada O irmão alemão, o escritor brinca com semelhanças entre personagens e sua vida Foto: Foto: Divulgação


Foi o poeta pernambucano Manuel Bandeira quem cometeu a indiscrição. Chico Buarque visitava sua casa ao lado de Vinicius de Moraes e Tom Jobim quando o autor de Estrela da manhã fez uma referência casual a um tal de “filho alemão do seu pai”. O escritor e cantor nunca esqueceu a história desse irmão perdido, fruto de um curto relacionamento do historiador Sérgio Buarque de Holanda com uma jovem alemã, Anne Ernst, antes mesmo de conhecer a mãe de Chico.

No quinto romance de sua carreira, ele parte dessa informação – tão pontual e tão marcante – para criar a trama da obra. O irmão alemão (Cia. das Letras, 240 páginas, R$ 39,90) é, então, uma ficção com saborosos traços da vida e da biografia de Chico e da sua família. Ao mesmo tempo, é uma narrativa angustiante sobre a procura por um desaparecido sobre o qual não se pode perguntar.

Chico Buarque não costuma mais falar à imprensa brasileira sobre seus livros ou mesmo sobre sua música. Ironicamente, no novo livro, resolve expor-se de uma forma singular: homenageia os pais sem criar um relato biográfico, fala de histórias familiares sem se ater a uma série de fatos, transforma-se em personagem sem deixar o personagem se confundir com o autor. É um livro que diz muito sobre Chico, mas não através de uma confissão direta. É justamente por poder usufruir desse jogo entre dados reais e ficção que consegue dar tantos detalhes curiosos de sua vida sem fazer do resultado um diário ou um relato cheio de fofocas.

A trama é contada em primeira pessoa por Francisco de Hollander, o Ciccio. Logo no primeiro capítulo, surge o mistério do irmão alemão, através de uma carta encontrada em meio a um livro da biblioteca do pai – aliás, a visão desse Sergio de Hollander distante, que finge não ver o interesse do filho pelas suas estantes, que se nega a trocar com ele mais do que palavras banais e que vive a partir e para a sua biblioteca, é um dos pontos mais sentimentais e bonitos da obra. Na obra, Ciccio tem apenas um irmão brasileiro (ao contrário dos seis na realidade), o galanteador Domingues – ou Mimmio, para a mãe italiana, Assunta –, e está sozinho nessa busca pelo passado.

Se Chico descobriu o verdadeiro paradeiro do irmão através de investigadores indicados pela Companhia das Letras – e dizer mais do que isso talvez revele demais a história –, quando já havia começado a narrativa e estava emperrando nela, na ficção tudo acontece diferente. Desde jovem Ciccio é obcecado pela história: provoca o pai na mesa de jantar, bisbilhoteia as cartas que acha nos livros da casa e vai até atrás de um pianista alemão radicado no Brasil.

Essa investigação é recheadas de ilusões sobre os encontros com o irmão alemão e pesadelos, mas O irmão alemão se desenvolve para além dela. Ciccio sente um ciúme estranho do irmão – todas suas conquistas são, na verdade, garotas com que Mimmio já dormiu – e vê a ditadura intervir na vida dos seus amigos e na sua casa. As cartas reais trocadas pelo pai com a antiga namorada e com o governo alemão sobre o destino do filho perdido aparecem ao longo de toda a obra. Sérgio precisou, por exemplo, provar que o garoto não tinha nenhuma herança judia para que a criança fosse encaminhada para a adoção.

O nazismo, que pode ter perseguido seu meio-irmão e a mãe dele, e a ditadura, que faz o mesmo com vários conhecidos, são as formas do terror na obra. Chico recria com sutilezas a sensação de tentar encontrar alguém desaparecido quando não se pode perguntar a ninguém, quando tudo é tabu, distância e opressão. Enquanto não se sabe o paradeiro dele, tudo é possível, menos finalmente aceitar o sumiço, parece concluir o romance.

Os livros de Chico, mesmo quando premiados e elogiados pela crítica, costumaram a ser olhados com desconfiança. Talvez O irmão alemão seja o ponto em que se possa enxergá-lo como um escritor a partir só dos recursos da sua ficção – cinco romances e uma novela são mais do que suficientes para se ter uma boa noção da sua prosa, sem precisar fazer referência a letras, melodias e fama na música.

O autor de Budapeste e Leite derramado encontra aqui mais um modelo envolvente para contar a história. O misto de ficção e traços biográficos é irresistível para quem conhece sua trajetória de alguma forma, e a sorte é que o romance se sustenta para além disso. Para usar um termo tão recorrente nos últimos tempos, a autoficção de Chico também não o expõe demais: como ele já mostrou diversas vezes em entrevistas, seu gosto por inventar – com humor, muitas vezes – a sua própria biografia permite que seu personagem seja revelador e falso, um minilabirinto dentro do romance.

O próprio Ciccio cogita em certo momento que talvez o seu irmão alemão também esteja escrevendo um romance sobre o pai que não conheceu, fantasiando-o tanto como o personagem brasileiro faz. O leitor participa de uma investigação em conjunto com o narrador, de uma história de detetive em que o principal elemento é a imaginação. Salvo o porém do excesso de tramas paralelas e personagens menores, que não comprometem a trama, Chico compõe a obra com passagens bonitas, especialmente quando fala do pai, mostra a solidão da mãe ou projeto o irmão ausente. O irmão alemão é uma narrativa que é sincera e artificiosa de uma só vez: um livro inquietante, feito de vida e ficção.

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