É fácil afirmar: não haveria nenhum questão em torno de quem é Elena Ferrante se sua escrita não fosse tão potente. A tetralogia napolitana – que tem o seu terceiro volume, História de Quem Foge de Quem Fica (Globo Livros), lançado agora no Brasil – é sem dúvida a sua principal realização: uma longa narrativa que perpassa anos de uma amizade entre duas mulheres, em suas competições, projeções, afetos e caminhos.
Toda a obra de Ferrante, afinal, parece ter um interesse comum: trabalhar com o universo de personagens e experiências de mulheres. O feminino, se é que possível falar em algo assim, interessa à autora porque foi injustamente relegado ao campo da literatura comercial, repetitiva; ou seja, há muito para se investigar, refletir e destruir para além da superficialidade. Não por acaso, é difícil ler uma narrativa de Ferrante sem pensar, em algum momento, que se está diante de algumas das grandes personagens mulheres da literatura.
Também lançado agora, o romance A Filha Perdida (Intrínseca), por exemplo, aborda a maternidade. Uma mulher, Leda, já na beira dos 50 anos, parte para passar as férias sozinha no litoral italiano depois que suas duas filhas, já adultas, saíram de casa. “Quando minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava havia anos, descobri, com um deslumbre constrangedor, que eu não sentia tristeza alguma – pelo contrário, estava leve, como se só então as tivesse definitivamente posto no mundo. Pela primeira vez em quase vinte e cinco anos, não senti mais aquela ansiedade por ter que tomar conta delas”, diz.
Nos dias de leitura à beira-mar, Leda começa a observar com curiosidade uma mulher, Nina. De certa forma, é um exercício que a coloca em contato com o turbilhão do próprio passado – seus erros, o afeto imensurável e difícil pelas filhas, as aspirações profissionais.
Qualquer mãe, qualquer filha, qualquer pessoa terá um vislumbre da complexidade dos sentimentos maternos – mesmo os mais puros – através de A Filha Perdida. Leda nutre amor pelas filhas, mas também sente que o seu amor por elas anula seus outros anseios, desejos profissionais e pessoais. “O cansaço físico é uma lente de aumento”, resume. Seu ex-marido, Gianni, era carinhoso com as filhas, apesar de não reservar muito tempo para elas: só é ele que tem o direito de viajar a trabalho e ter uma carreira promissora. Em dado momento, a narradora-personagem confessa: “Aos poucos, cedi. Eduquei-me a estar presente somente se (as filhas) quisessem minha presença e a ter voz somente se me pedissem para falar. Era o que exigiam de mim e o que eu dava a elas. O que eu queria delas, isso nunca entendi, nem mesmo agora tenho essa resposta.”
Ferrante também é hábil em manter a narrativa com mudanças inesperadas, mesmo a sustentando em boa parte com a memória. “Às vezes, precisamos fugir para não morrer”, Leda fala para Nina, em um encontro casual. Como os mais fascinantes personagens, a narradora é alguém que tateia a própria vida, compreende os motivos, mas não o sentido, do que faz. Ferrante define bem no começo da obra, afinal: “As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender”.