Para escrever sobre Roberto Bolaño, é bom seguir o conselho de um dos seus personagens: procurar exagerar somente o indispensável. Poucos escritores nas últimas décadas foram alvo de tanto fascínio como ele – e como todas as febres coletivas, sua imagem é metade sintoma real e outra metade uma deliciosa hipocondria. É fácil cair no exagero, até porque a publicação póstuma de 2666, romance impressionante, imenso e verborrágico, fez de Bolaño um clássico contemporâneo. O volume, no entanto, era só o começo da apresentação da obra oculta e pronta deixada pelo autor chileno – um grafomaníaco, que escreveu sem parar até morrer com 50 anos.
No final do ano passado, os herdeiros do autor anunciaram a publicação de um novo volume inédito: O Espírito da Ficção Científica. Editado agora pela Companhia das Letras, trata-se do seu primeiro romance, escrito em 1984 na Espanha. É um título que o próprio Bolaño abandonou depois, mas que, justificam os herdeiros, tinha ares de finalizado em um envelope.
O volume não chega a ser uma mera curiosidade, como a gravação caseira de um cantor já morto. Sim, tem uma estrutura narrativa clara, traz a versão mais jovem da escrita visceral de Bolaño e, saborosamente, nos lembra de algumas das melhores obsessões literárias do escritor. Não é um bootleg feito do sabor do acaso; ao mesmo tempo, não se pode dizer que tem a mesma consistência que os seus melhores romances.
A questão é que, quando se trata de alguém que adquiriu essa dimensão, até as imperfeições são fascinantes. O Espírito da Ficção Científica parece acabar mais cedo do que poderia e tem trechos menos sujos e vivos do que é o comum para Bolaño. E é claro que obras como Detetives Selvagens, 2666 ou Estrela Distante são portas de entrada melhores para o universo de sua escrita. Felizmente, algo da máquina de narrar – com desespero e alguma esperança – o caos da vida dos jovens latino-americanos está ali, presente.
O Espírito da Ficção Científica gira ao redor de dois personagens, amigos com menos de 20 anos que dividem um quarto minúsculo em uma cobertura decadente na Cidade do México. São, como alguns dos melhores personagens de Bolaño, garotos deslumbrados com a literatura, mas não com a literatura de simpósios e solenidades. Como mariposas, estão ao redor de uma luz que emana da escrita, algo que vaza da vida suja e brilhante de poetas e artistas. A leitura não é o passatempo de uma tarde casual, ou um meio de pesquisa e vida: é, para Jan e Remo, a vida em si.
Enquanto Jan quase não sai do quarto, Remo sobrevive da escrita de textos para jornais e revistas. Ao conhecer o aspirante a poeta José Arcos, começa a investigar um dado impressionante: a imensa quantidade de revistas literárias que circulam no país. “Como é possível, perguntava-se dom Ubaldo, que, numa cidade onde o analfabetismo crescia meio por cento ao ano, a produção de revistas líricas aumentasse?”, escutam no meio da sua subtrama de detetives. “Nos Estados Unidos estão viciados em vídeo, tenho bons dados. Em Londres os adolescentes brincam por alguns meses de ser estrelas da música. E não acontece nada, claro. Aqui, como era de se esperar, procuramos a droga e o hobby mais barato e mais patético: a poesia, as revistas de poesia”, pondera Remo.
Jan, por sua vez, passa os dias dedicado a escrever cartas para autores americanos de ficção científica. Cria também o seu romance sci-fi, mas isso “é duro e estou na América Latina, é duro e sou latino-americano”. Em outro momento, ao ser cobrado para se ater ao realismo, porque a ficção científica é “muito distante”, ironiza: é como se os latino-americanos não tivessem direito a sonhar mais do que o pitoresco que lhes cabe.
Em uma terceira narrativa do romance, um autor, vencedor de um prêmio literário, explica para uma jornalista o seu romance – Bolaño é um mestre em descrever narrativas e torná-las mais fascinantes do que seriam. No fim, o título escolhido para a obra é preciso, mesmo que o chileno não construa um romance de ficção científica; tal qual seu amigo, o argentino Rodrigo Fresán, prefere imaginar histórias de amor com astronautas, ou tramas com jovens que se sentem extraterrestres. É mesmo o espírito da ficção científica, é o fascínio pelo fascínio, que o interessa.