A dinastia dos Buendía, o enxame de borboletas amarelas, o dia em que se conheceu o gelo, os quase cinco anos de chuva. De certa forma, os elementos do romance Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, são parte constante do imaginário literário – e se estenderam para muito além dele, na forma como o mundo via o nosso continente – da América Latina. Ao escrever sobre Macondo e um mundo “tão recente que muitas coisas careciam de nome”, o autor parecia estar falando da ancestralidade coletiva, de todas e de cada uma das pequenas cidades da região e, mais do que tudo isso, sobre o prazer de narrar, e de narrar bem, histórias.
Quando foi lançado na Argentina, Cem Anos de Solidão foi um rápido fenômeno editorial, que fez Gabo chegar anônimo ao país e sair reconhecido por pessoas na rua. Já são 50 anos do lançamento da obra, hoje um clássico essencial da literatura latino-americana – tanto na sua celebração internacional como no sentido até de obra contestada (mas também incontornável) para as gerações posteriores.
Tudo é um tanto mítico na concepção da obra-prima do realismo fantástico. García Márquez, confiante no livro que escreveria, entregou US$ 1,5 mil para a sua esposa, Mercedes, e disse que se trancaria por seis meses para concluir a obra. Terminou passando um ano e meio quase isolado. Enquanto isso, Mercedes fazia malabarismos para driblar a cobrança de dívidas e cuidar dos filhos.
Cem Anos de Solidão ficou pronto e foi publicado pela editora Sudamericana, da Argentina. A obra, finalmente lançada em 1967, esgotou a sua tiragem rapidamente – e quem já leu a trama das sete gerações dos Buendía entende a crescente febre que foi atingindo o meio literário e os leitores. Gabo dizia ter destruído os originais do livro assim que recebeu um exemplar a primeira edição, para que “ninguém pudesse descobrir os truques ou a carpintaria secreta”.
A consagração do livro foi quase absoluta. O escritor Tomás Eloy Martínez chamou logo no lançamento a obra de “o grande romance da América”, ideia que não se descolaria dela até hoje. O peruano Mario Vargas Llosa, que ganharia, anos depois de Gabo, o Nobel da Literatura, afirmou em 1971 que Cem Anos de Solidão era “uma das obras narrativa mais importantes da nossa língua (...). Um mundo vasto, que aprisiona coisas muitas e diversas dentro do espaço novelesco”. O poeta chileno Pablo Neruda não poupava elogios à obra também: “O Dom Quixote do nosso tempo”. Do lado dos detratores, atribuem a Jorge Luis Borges uma frase abusada sobre o livro: o escritor argentino teria dito “que com 50 anos já dava para contar toda a história”.
O livro foi um dos carros-chefe do movimento que foi apelidado pela crítica internacional como o “boom” da literatura latino-americana, que abriu os olhos do mundo para a geração de escritores do continente. Ao lado de García Márquez, nomes como o argentino Julio Cortázar, o mexicanos Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, todos amigos à época, foram alçados – com ajuda da agente literária Carmen Barcells – para a fama literária a ponto de ajudarem a formar um imaginário sobre o continente. Fuentes definiu, em uma carta a Gabo, esse poder continental de Cem Anos de Solidão: “A América Latina, culturalmente, passou da utopia da fundação à epopeia da encarnação e desta ao mito do reconhecimento, da reconquista: suas páginas são as três coisas, a totalidade do nosso mundo”.
Essa América Latina utópica, mítica e epopeica teve e tem muitos admirados, mas também se tornou um peso para as gerações que viriam. A geração McOndo – título de uma coletânea organizada pelo chileno Alberto Fuguet em 1996, misturando a cidade fictícia de Gabo com a McDonald’s – buscou se contrapor à expectativa do mercado literário e da crítica por apenas narrativas “fantásticas e exóticas” sobre o continente, numa degeneração da força do próprio realismo mágico. Nasceria daí uma prosa latino-americana urbana, com ares pop e sem deixar de vislumbrar a própria condição periférica.
Agora, para celebrar os 50 anos do romance, a editora Record prepara uma edição especial, com capa dura, que vai chegar as livrarias no próximo mês. É uma homenagem a um romance extremamente popular também no Brasil: ao longo da sua trajetória, mais de 500 mil exemplares já foram vendidos aqui. A tradução mais recente de Cem Anos de Solidão, que vai estar presente no volume, é a do escritor e jornalista Eric Nepomuceno, que foi um dos grandes amigos de García Márquez.
Para ele, é fácil determinar a importância da obra: ela é essencial para se entender do que falamos quando falamos de “América Latina”. “E mais: acho um desses romances únicos, singulares, que são fundamentais para entender a vida”, define.
O tradutor e escritor Eric Nepomuceno conheceu García Márquez quando estava em Havana, em Cuba, em 1978. Foi ao hotel em que o escritor estava hospedado sem marcar nada e tentou falar com ele. Gabo o recebeu bem e, quando Eric passou a morar na Cidade do México, os dois começaram uma longa amizade.
Com o tempo, Eric passou a ser também o tradutor de livros de García Márquez para o português. Um deles foi Cem Anos de Solidão. “Fui um leitor tardio. O livro é de 1967, só fui ler em 1974. Antes li Relato de um Náufrago, Ninguém Escreve ao Coronel e Os Funerais de Mamãe Grande... Quando enfim cheguei a Cem Anos, já era admirador de García Márquez”, conta. “Eu estava morando em Buenos Aires e o livro foi um turbilhão. Fiquei absolutamente fascinado. Volta e meia relia longos trechos, e era sempre um ângulo novo que se revelava”
Cerca de 30 anos depois, Eric foi convidado a fazer uma nova tradução. “Já não estava lendo, estava escrevendo no meu idioma o que ele escreveu no dele. E descobri coisas que ou não havia descoberto antes, ou tinha esquecido. A carga delicadíssima de erotismo, por exemplo. Chegamos a comentar isso, e ele mesmo dizia que não se lembrava. Passado um tempinho me disse ter ficado intrigado, foi lá ver e eu tinha razão. A força desse livro é perene”, define.
Nos muitos encontros com Gabo, o tradutor diz não ter conversado tanto sobre a obra. “Ele se interessava pelo que estava fazendo em determinado momento. O de antes era o de antes”, explica Eric. Nas poucas vezes em que citou Cem Anos de Solidão, afirmou que “o livro tinha sido uma catástrofe em sua vida pessoal”. “Dizia que a única solidão comparável à da fama – e ele sabia que era dono de uma fama imensa – é a solidão do poder. Várias vezes pude estar com ele em reuniões fechadas com velhos amigos de antes de Cem Anos, ou seja, antes do peso e da prisão da fama. E aí García Márquez mudava, era outro, era feliz. Ter plena noção da fama descomunal e de seus benefícios, diretos e indiretos, jamais foi capaz de curar a dor de já não poder viver a vida de antes dela”, avalia o amigo.
Sobre a traduzir García Márquez, Eric conta que cada livro trouxe um desafio diferente. “Foi, sim, muito difícil achar seu ritmo, sua melodia, sua carga poética, sua carpintaria perfeita. Ser amigo dele ajudou num aspecto: eu lia e traduzia ouvindo sua voz contando coisas na mesa da cozinha de sua casa no México. Esse era o tom, o som, que eu tinha que alcançar”, pondera. “E complicou em outro: eu não podia errar. Pronta a tradução, eu costumava ligar para ele – depois de pronta, fechada – para comentar o livro por dentro. Ou seja, por quem o desmontou e tornou a montar em outro idioma.”
O tradutor ainda confessa que só uma vez consultou o amigo. “O resultado foi desastroso: ele me disse que de seus tradutores eu era o único que não tinha direito de aborrecê-lo”, lembra.