Nada nasce de repente, principalmente os fenômenos avassaladores. O ambicioso enredo veio ao esperar um trem atrasado em Manchester, na Inglaterra. Depois de um casamento fracassado e de estar desempregada e com uma filha para cuidar, a britânica J.K. Rowling sentia que tudo que havia tentado tinha sido um erro. A sensação, no entanto, foi libertadora. Partiu dali para escrever o livro que sonhava. Ainda lidou com as rejeições dos manuscritos. Tudo isso hoje é a parte quase mítica de uma história que culminou em uma data: o dia em que Harry Potter veio ao mundo, um dia 26 de julho como o de hoje, há 20 anos.
Mesmo quem viu, num primeiro olhar, potencial na obra não poderia suspeitar da dimensão que a saga alcançaria. Harry Potter atingiu talvez o patamar máximo de popularidade e aclamação: tornou-se parte essencial do dialeto pop. Mesmo quem não leu ou viu sabe muito mais do que o nome da saga. O enredo dos sete livros é tão difundido que quase ninguém pode reclamar de um spoiler. A saga é como Star Wars, Batman ou algo assim – alguém pode até não ter interesse, mas é impossível simplesmente ignorar.
O Twitter e o Facebook fizeram homenagens às duas décadas do livro. “Há 20 anos, um mundo que eu havia experimentado sozinha de repente se abriu para os outros. Foi maravilhoso. Obrigada”, escreveu J.K. Rowling ontem para os fãs.
Muito já se falou sobre a construção minuciosa de um universo que a autora conseguiu fazer, em que detalhes do primeiro livro, Harry Potter e a Pedra Filosofal, mostram o porquê de sua existência no livro final, Harry Porter e as Relíquias da Morte. O garotinho oprimido pelos tios “trouxas” e que desconhece a magia é o guia ingênuo e carismático para o mundo bruxo construído dentro da realidade como conhecemos e, especialmente, para a escola de Hogwarts. Um dos grandes apelos do início da saga é que Harry ignora a magia tanto quanto o leitor (e que também, como um bom herói juvenil, traz em si uma boa dose de catarse na libertação ante a opressão familiar).
Hoje é mais fácil de perceber porque Harry Potter foi um fenômeno de anos de duração – e que vai demorar muito para deixar de ser lido e visto. O primeiro livro traz um narrativa juvenil, breve e deliciosamente ingênua. Com o avançar das tramas, Harry vai crescendo. Junto com ele – e eis um dos grandes méritos de Rowling –, a narrativa amadurece, tem mais nuances, sem nunca perder o charme do seu formato de boa e velha aventura. No final da saga, clima de terror que cerca a ascensão de Voldermort é totalmente distinto do seu começo, mas não menos envolvente. O personagem cresceu junto com seus leitores.
Talvez por isso Harry Potter seja um livro quase idealizado, seguido fanaticamente duas décadas depois do seu pontapé inicial. E sempre foi assim. No intervalo entre os lançamentos dos livros (e ainda hoje), admiradores se dedicavam a fazer fanfics, ou seja, a contar histórias que se passavam no universo de Hogwarts, criando o futuro de Harry, Hermione e Ron ou mesmo inventando personagens.
De todo jeito, é difícil não ver na série o marco da formação de uma geração de leitores – alguns abriram seus leques para outras obras de ficção, outros ficaram procurando equivalentes aventurescos do universo de Hogwarts. A sensação de que toda uma geração lia o mesmo livro e dialogava sobre ele foi poderosa para os pottermaníacos. Além disso, é claro que existiam livros juvenis e para adolescentes antes, mas Harry Potter foi um fenômeno em uma dimensão tão grande que o mercado literário passou a procurar os próximos fenômenos. Artemis Fowl, Percy Jackson e Desventuras em Série, entre muitos outros, até conseguiram algum sucesso, mas nunca chegaram aos pés do menino que sobreviveu.
O nascimento do nicho chamado de literatura para jovens adultos (young adult, ou YA, em inglês) vem do envelhecimento do leitores dos livros de Rowling. Nascia daí uma ficção comercial, muitas vezes de fantasia, que tentaria atrair o público adolescente. São casos de obras sem essa origem mais infantil da saga da Rowling, como Crespúsculo e Jogos Vorazes, claramente em dívida com o sucesso potteriano (que também tem seu predecessores, como As Crônicas de Nárnia).
Ao longo desses 20 anos, a série Harry Potter alcançou a marca de 500 milhões de exemplares vendidos em 79 países, a ponto de ser considerada a mais vendida da história. Nada mal para um livro que começou a circular com apenas mil cópias e rendeu 1,5 mil libras para Rowling quando ela assinou seu primeiro contrato.
A escritora, que recebia auxílio desemprego quando começou a escrever o livro, é hoje uma das pessoas mais ricas do Reino Unido, com uma fortuna estimada em 600 milhões de libras. Com o lançamento do primeiro filme, a partir de 2001, o universo de Hogwarts se expandiu e passou a ganhar ares de franquia.
Desde que terminou os livros, em 2007, a autora investiu em romances policiais, tanto com seu nome como com o pseudônimo Robert Galbraith e lançou livros e filmes do universo de Harry Potter, como Animais Fantásticos e Onde Habitam. Em 2016, depois de um período sem grandes novidades, Rowling anunciou um novo episódio da trama, a peça Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, que se passa anos depois da formatura de Hogwarts. Obviamente, a febre literária retornou imediatamente, mesmo em se tratando de um texto teatral.
Mesmo fora dos livros, a escritora nunca abandonou completamente o universo que criou com tanto esmero. Vez ou outra responde a perguntas ou agradece elogios de fãs, por exemplo. Também revela alguns detalhes da história que nunca ficaram claros nos livros. Por tudo isso, Rowling parece não pensar em dar um adeus definitivo ao universo potteriano – o que, para os fãs ainda ávidos, é uma boa notícia.