Há 33 anos, a canadense Margaret Atwood, 78, estava morando em Berlim, em uma Alemanha ainda ideologicamente e geograficamente dividida pela Guerra Fria, quando começou a escrever O Conto da Aia. Era 1984 - ano que titula outra das maiores distopias literárias - e o livro seria publicado no ano seguinte. O enredo do romance se tornou bastante conhecido, principalmente nos últimos meses, devido ao sucesso de sua adaptação audiovisual, a série The Handmaid’s Tale, produzida pelo serviço de streaming norte-americano Hulu.
Em um futuro não muito distante, as mulheres de Gilead (país que outrora chamava-se Estados Unidos) não têm mais nenhum direito e sofrem com o regime totalitário, onde suas funções são dividas entre aias - cuja rotina é destina a engravidar -, esposas e martas.
Nos anos que se seguiram, Margaret continuou a pautar suas histórias a partir de personagens femininas fortes e denunciando o machismo e a misoginia através da ficção. Em 1996, ela publica Vulgo Grace, obra reeditada no Brasil pela editora Rocco (512 páginas, R$ 49,90), que acaba de ser adaptada pela Netflix e estreia hoje.
A série é uma co-produção do serviço de streaming, da Halfire Entertainment e CBC. Em seis episódios, Vulgo Grace se passa no Canadá e conta a história de Grace Marks, uma jovem imigrante irlandesa de 16 anos, empregada doméstica, acusada de assassinar seu empregador, Thomas Kinnear, e a governante da casa em que trabalhava, Mary Montgomery, que estava grávida dele.
A narrativa é baseada em uma história real e tem início de fato em 1859, em Toronto, quando Grace - que está presa há 15 anos e trabalha durante o dia como costureira e empregada na casa da esposa do governante do presídio - conhece o americano Dr. Simon Jordan. O médico é um “estudioso de doenças mentais” - numa época em que ainda não existia o termo psiquiatra - e viajou do Massachussets até o Canadá para se dedicar ao misterioso caso de amnésia de Grace, que não se lembra dos assassinatos.
Culpada ou inocente, vítima das circunstâncias e do gênio maldoso de James McDermott, outro empregado da casa, culpado dos assassinatos e condenado à morte? A dúvida é levantada por Margaret Atwood, como também aconteceu com o caso da verdadeira Grace.
O diálogo com os fatos verídicos é bastante interessante e realizado por meio de epígrafes em cada um dos 15 capítulos do livro. Em alguns dos casos, o leitor encontra trechos de livros ou poemas famosos que remetem à temática da obra, como A Prisioneira, de Emily Brontë, The Philosophy of Composition, de Edgar Allan Poe ou ainda Remember, de Christina Rossetti, respectivamente de 1845, 1846 e 1849, demonstrando que o mergulho da autora no universo dos anos em que viveu sua Grace foi fruto de uma minuciosa pesquisa histórica.
Muitas das epígrafes são também trechos das confissões da protagonista, de James McDermott e depoimentos de pessoas que visitaram Grace na prisão. “Grace Marks olha para você de esguelha, com um olhar furtivo; ela nunca o encara de frente e, após um relance dissimulado, invariavelmente volta os olhos para o chão”, escreveu Susanna Moodie em 1853. Ou ainda sobre o outro acusado: “Mc Dermott...era mal-humorado e grosseiro, havia bem pouco a admirar em seu caráter”, como o descreveu William Harrison em texto publicado no Newmarket Era em 1908 sobre os assassinatos, defendendo ainda o caráter e a “boa índole e maneiras gentis” de Grace Marks.
A opinião de Harrison de que a jovem empregada foi também uma vítima é defendida por diversos personagens do enredo de Atwood e mantida em suspense por muitos capítulos, assim como o desenrolar das recordações da personagem principal e da evolução de suas conversas com Dr. Jordan.
A trama é costurada um pouco como as colchas que Grace alinhava para as filhas do governador: em um ritmo envolvente, por vezes lento mas nunca cansativo, em que Margaret Atwood cria um thriller psicológico vestido de romance histórico.
Há anos os livros de Margaret Atwood vem sido legitimados como feministas e a própria autora não foge dessas afirmações. Preocupada em retratar os pormenores da sociedade machista patriarcal, a canadense é também conhecida pelo seu engajamento político nas redes sociais - como bem podem atestar seus 1.77 milhões de seguidores no Twitter.
Na rede social, ela dá retweet em fotos de leitoras fantasiadas das personagens d’O Conto da Aia (o famoso traje vermelho e touca branca); critica as posições do presidente norte-americano Donald Trump; compartilha entrevistas e matérias sobre sua obra e novidades das séries. Seu empenho para com as adaptações de seus livros no formato televisivo é inegável: além de ter acompanhado as gravações tanto de The Handmaid’s Tale e Vulgo Grace, ela faz aparições em cada uma delas.
Se no livro de 1985 a opressão contra as mulheres é retratada pela autora de maneira bastante clara, objetiva e compõe o principal enredo da história, as críticas em Vulgo Grace são mais tênues, mas não menos incisivas e sarcásticas. É contando a história do adolescente, filho único de uma família abastada, que iniciou sua vida sexual com as empregadas da casa; é também através das conversas dos guardas da penitenciária na frente de Grace sobre sua possível performance sexual; ou ainda sobre como as mulheres eram sempre diagnosticadas com histeria que Margaret denuncia o machismo que Grace e mulheres do mundo todo sofrem.
Em entrevista à The New Yorker, a canadense falou uma vez que não cria novos mundos, só ressalta o já existente. Dos EUA do final do século 20 ao Canadá de 1859, as histórias e personagens de Margaret Atwood, são também as do Brasil, da China e da Síria de 2017.
"- Então, você perdeu a esperança?
- Esperança de quê, senhor? - ela perguntou suavemente. Simon sentiu-se embaraçado, como se tivesse cometido uma gafe.
- Bem...esperança de ser libertada.
- Por que haveriam de querer fazer isso, senhor? - ela disse. - Uma assassina não é uma pessoa comum. Quanto às minhas esperanças, eu as reservo para as pequenas coisas. Vivo na esperança de ter amanhã um desjejum melhor do que tive hoje. - Esboçou um sorriso. - Disseram na época que estavam fazendo de mum um exemplo. (..) Mas o que um exemplo faz, depois?, Simon pensou. A história dela já terminou. isto é, a história principal, aquilo que a definiu. Como ela deverá preencher o restante do tempo?”
Na última premiação do Emmy Award, maior celebração da televisão mundial, em setembro passado, The Handmaid’s Tale foi um dos maiores destaque da noite. O fato - e as cinco estatuetas, incluindo Melhor Série, Melhor Roteiro, Melhor Direção em Série Dramática e Melhor Atriz Coadjuvante - resultou em uma expectativa ainda maior em relação a Vulgo Grace. A série estreia hoje na Netflix com os seis episódios que integram esta primeira temporada.
No comando da adaptação do romance, um time de mulheres canadenses: Mary Harron (Psicopata Americano) na direção, Sarah Polley (Longe Dela e Histórias que Contamos) como roteirista e Sarah Gadon na pele de Grace Marks. Sem esquecer, claro, da própria Margaret Atwood que faz algumas aparições.
O trailer da série foi divulgado no último mês de setembro pela Netflix e mostra, ao longo de quase dois minutos e meio, o enfoque que a produção dá à relação de Grace com o médico Simon Jordan, interpretado por Edward Holcroft.