Especial: Poetas analfabetos do sertão do Pajeú de Pernambuco

A série de reportagens, que vai de 17 a 19 de dezembro de 2017, expõe a luta da cultura contra o descaso sociocultural, focando na vida de três poetas analfabetos
JEFFERSON SOUSA
Publicado em 17/12/2017 às 15:00
A série de reportagens, que vai de 17 a 19 de dezembro de 2017, expõe a luta da cultura contra o descaso sociocultural, focando na vida de três poetas analfabetos Foto: Foto: 1° e 3° de Jefferson Sousa; 2° Arquivo da família


A série de reportagens especiais, intitulada Poetas Analfabetos do Sertão do Pajeú de Pernambuco, apresenta, de 17 a 19 de dezembro de 2017, no Jornal do Commercio, décadas de luta da cultura popular nordestina contra o descaso sociocultural, exemplificando através da vida e obra dos poetas analfabetos Leonardo Bastião, Pedro Tenório de Lima e Antônio Pereira. Além de expor como a ausência de políticas de preservação fez com que incalculáveis artistas sem escolaridade tivessem suas obras perdidas, a reportagem é um convite ao leitor para ingressar um pouco no contexto cultural da região, entendendo, por meio de entrevistas exclusivas e cotidianos intimistas, o valor do universo poético de cada autor.

Poesia feita com suor e fé

 

Pedro Tenório por um roçado que acabou de arar (Foto: Jefferson Sousa/ Especial para o JC)

Sertão do Pajeú de Pernambuco. Mais um sol nasce sob um cenário que reafirma o estereótipo da caatinga desassossegada: chão e plantas tão secas quanto a panela da maioria dos moradores da zona rural da região. A descrição pode ser utilizada para narrar uma das grandes estiagens do Nordeste da década de 1960, de 1950, ou de qualquer outra anterior. Nessa época, quanto mais afastada essa gente dos centros urbanos, menos escriturações eram feitas – não há, no universo acadêmico, registros etnográficos dessa época, apenas análises em cima de números catalogados por prefeituras. Por outro lado, no campo artístico, o conhecimento popular, através da poesia metrificada e do repente, se encarregou de guardar e difundir detalhes históricos que aconteciam longe dos holofotes, sendo repassados por gerações, dentro de cada casa e círculo de conhecidos.

Infelizmente, é incomensurável a quantidade de artistas sem escolaridade que tiveram suas obras perdidas pela ausência de ações políticas-sociais que agissem em prol da preservação cultural e da memória. Todavia, Leonardo Bastião, Pedro Tenório de Lima e Antônio Pereira (1891–1982) são três figuras exemplares dessa realidade que vieram seguindo um caminho diferente ao do esquecimento. Todos são reconhecidamente celebrados, à sua maneira e intensidade, pela região onde atuaram ao longo dos anos, mas, mesmo assim, suas obras ainda estão beirando a dissolução pela falta de um registro oficial como, por exemplo, publicações físicas.

Leonardo Bastião na porteira de seu sítio (Foto: Jefferson Sousa/ Especial para o JC)

Situação exemplificada pelo poeta Leonardo Bastião, em A Infância e a Seca: “Eu nasci porque Deus quis/ E pai sem puder me criou/ E a pobreza num deixou/ Eu ser criança feliz/ Sem aprender nada fiz/ Perdi toda a mocidade/ E dei fé no fim da idade/ Quando não tinha mais vaga/ Que a pobreza é quem apaga/ O sonho da felicidade”, relata no primeiro dos dez decassílabos metrificados que compõem o poema. Leonardo, assim como Pedro e Antônio, nunca tiveram acesso à educação tradicional básica e, consequentemente, jamais aprendeu a ler e escrever.

Até em uma conversa curtíssima com Leonardo Bastião já é possível perceber que naquele olhar e palavras há uma sabedoria popular de rara medida. O poeta-lavrador se mostra consciente sobre tudo o que perdeu por não ter tido a oportunidade de aprender como usar um lápis, assim como tem conhecimento dos motivos da impossibilidade do aprendizado na época e condição em que vivia: “Minha carta de ABC/ Foi um bisaco na mão/ Catando balde de feijão/ Pra cozinhar e comer/ Limpei mato sem poder/ Que o filho de pobre se atola/ Nunca chutei uma bola/ Mas andei em jegue ruim/ Por que filho de pobre era assim/ Sem ter direito a uma escola”, declamou seu verso, olhando para o céu, sentado em um tamborete feito de um pedaço de um tronco de árvore. Após uma rápida pausa, ele suspirou profundamente e disse, “é muita coisa pra se sentir, quem era bom mesmo em falar de saudade, por exemplo, era Antônio Pereira.”

A saudosa indicação de Leonardo não foi à toa, e entendemos o motivo quando descobrimos o verso: “Se quiser plantar saudade/ Escalde bem a semente/ Plante num lugar bem seco/ Onde o sol seja bem quente/ Pois se plantar no molhado/ Quando crescer mata gente”, disse Antônio Pereira de Morais, poeta analfabeto que nasceu em 13 de novembro de 1891, em Livramento (PB), e, aos seis anos de idade, foi morar no Sítio Jatobá, pertencente ao município de Itapetim (PE). Lá se registrou civilmente, casou com Tereza Vigolvina da Conceição, teve dez filhos (Antônio Filho, José, Zezito, Gilvan, Lindalva, Julia, Severina, Maria Aparecida, Alaíde e Maria de Lurdes, todos com sobrenome de Pereira) e viveu até o fim da vida, em 7 de novembro de 1982.

Antônio é, até hoje, tão bem lembrado entre os poetas populares que há músicas que foram baseadas em sua obra ou que simplesmente trazem trechos de alguns de seus versos, como Lembrança de um Beijo, de Santanna, O Cantador, que abre a canção com a sextilha citada acima.

“Era tudo na base do candeeiro. Éramos seis filhos e quatro filhas. Nos criamos todos, os 12 membros da família, pais e filhos juntos”, contou Antônio Pereira Filho, em frente aos restos de tijolos e algumas paredes que sobraram da casa de taipa. “Meu pai não gostava de sair daqui. Éramos muito pobres, então ele só saía para a cidade [Itapetim (PE)]quando realmente precisava. Houve também época em que Louro do Pajeú [Lourival Batista] – nome que representa a máxima da cantoria de viola – mandava buscá-lo para que ele participasse dos congressos de violeiro em São José do Egito (PE). Louro dava o dinheiro do transporte, mandava roupas e calçados para que ele pudesse ir bem vestido, pois todos queriam ver quem era o dono dos versos que tantos cantadores estavam reproduzindo”.

Assim como Leonardo, Pedro Tenório de Lima admira as obras de Antônio e, em paralelo, o legado deixado por cantadores de viola como Pinto do Monteiro e Louro. “Me criei abraçando a agricultura/ Já tô véi, a cabeça tá cinzenta/ Pra onde vou é levando a ferramenta/ E uma faca de doze na cintura/ Minha boca lambendo rapadura/ E meu almoço, um punhado de farinha/ A merenda é um ovo de galinha/ Namorei abraçando as raparigas/ Me deitando por cima das formigas/ Que uma cama bonita eu não tinha”, é um dos versos de autoria de Pedro Tenório, de família humilde, que mesmo nascido em 5 de março de 1945, ainda é hoje um agricultor ativo.

“Meu irmão, Severino Tenório de Lima, que já morreu, era o único outro relacionado com a cultura nordestina na nossa família, pois ele fazia aboio. Eu não conheci meu pai, mas conheci a enxada desde cedo e, pelo pouco que entendo de poesia, acho que ela é quem veio sendo a minha caneta”, contava enquanto caminhava de volta para a sua casa após o trabalho que durou o dia inteiro. Antes disso, quando encontrou com a equipe da reportagem a primeira vez, expressamente com a saúde fragilizada, Tenório deu as costas para o extenso roçado que tinha acabado de arar sozinho, pôs a enxada sob um dos ombros, apertou os olhos para conseguir enxergar melhor através da luz forte amarelada que o sol de fim de tarde propiciava, sorriu, e disse: “Eu sou e sempre serei exatamente o que vocês estão vendo agora: suor e fé”.

Entenda a metrificação

Metrificação é a forma de medir o verso de uma poesia. As sílabas métricas (ou poéticas) podem ser diferentes das sílabas gramaticais em alguns aspectos, pois priorizam a tonicidade, a marcação da sonorização da palavra.

Para entender melhor, devemos seguir os seguintes princípios: as sílabas poéticas que estejam após a última sílaba tônica do verso não serão contadas; ditongos têm valor de apenas uma sílaba poética; e duas ou mais vogais, átonas ou tônicas, podem combinar-se entre uma palavra e outra, instituindo uma só sílaba poética.

As mais populares categorias dentro da cantoria de viola e poesia popular nordestina são Heptassílabo/Redondilha Maior – verso com sete sílabas métricas –, Decassílabo – verso com dez sílabas métricas –, Martelo – decassílabo heroico com tônicas na 3º, 6º e 10º sílaba de cada linha –, e Galope à Beira-Mar – 11 sílabas com tônicas nas posições 2, 5, 8 e 11.

Na formulação de cada estrofe, os mais usados são Décimas – dez versos de sete sílabas –, muito usados em motes para glosas, e Sextilhas – formulado por seis linhas e podendo ser rimado aberto, fechado, solto, corrido e/ou desencontrado.

Casa e família são alicerces de poetas

Toca o sino da Igreja Matriz de São Pedro das Lages, paróquia de Itapetim (PE). São seis horas da manhã de um domingo de janeiro de 2017. Como reza a tradição, diversos católicos lotam o templo religioso e voltam as suas atenções para a celebração da missa que está para começar. Os mais velhos, com chapéus no colo, usando as melhores roupas, os mais novos sem chapéus, mas bem vestidos também. Leonardo Bastião e Pedro Tenório estão presentes. Os dois poetas se conhecem e sabem das suas semelhanças artísticas, mas por falta de intimidade, sentam-se em locais distantes um do outro.

A cerimônia começa e, assim com cada respectivo chapéu no colo, ambos dedicam orações às suas famílias, mas, assim como nos assentos, há muitas histórias que os separam de uma definição comum. Leonardo Bastião é pai de três filhos que já estão casados: José, Selma e Ivanir. Pedro Tenório teve dez irmãos. Quando perguntados pelo paradeiro deles, conta que não sabe nem se eles estão vivos, pois não tem notícias e nem os vê há décadas. “Mas, hoje, a reza é pelos meus filhos”, contou. No caso de Pedro, especificamente, dedicava uma parcela da reza para as más sensações que vinha sentindo recentemente, estas que, três meses depois, o deixaria acamado a ponto de não ter condições físicas para receber a equipe de reportagem.

Os dois nunca saíram de próximo das casas onde nasceram. Pedro mora a vinte metros de onde ficava a casa de taipa que cresceu com seus irmãos. Ele se anima quando fala de seu filho mais velho que foi para São Paulo, criou família por lá e hoje tem uma vida estável. Leonardo também fala dos filhos com orgulho, mas o saudosismo por seus pais logo ganha destaque na conversa quando, da sua casinha, aponta para alguma vegetação do outro lado da estrada de barro, em frente a porteira do sítio em que estamos, e revela que lá ficava a moradia de seus pais. Leonardo entrou na sua casa e, sem demora, voltou com um tijolo enrolado em um pano, declamou o poema A casa dos meus pais, feito para homenagear o local indicado:

“A casa que eu nasci nela/ Dei os meus primeiros passos/ Quem sofreu pra fazer ela/ Me carregava nos braços/ Não tenho mais mãe nem pai/ E a casa depois que cai/ Fica passado e se encerra/ E cada torrão daqueles/ Tem lágrimas dos olhos deles/ Que misturou com a Terra.// Chorei quando vi caído/ O que pai fez com trabalho/ Até porque tinha sido/ O meu primeiro agasalho/ Foi ali onde eu nasci/ Onde eu chorei e sorri/ Meus pais choravam também/ E tantos sonhos desmoronados/ E tanto suor derramado/ Sem servir mais pra ninguém.// Aquela casa pequena/ Onde vivi a minha infância/ Caiu apagando a cena/ E matando a minha esperança/ Aqueles cacos de telhas/ Virou moradas de abelhas/ Marimbondo e ‘enxuir’/ E aquelas terras mexidas/ São testemunhas de vidas/ Que se acabou por ali”.

Antônio Pereira Filho apontado para a casa onde cresceu (Foto: Bernardo Ferreira/ Divulgação)

A matéria-prima em sua mão é uma das últimas unidades que ele guardou como recordação da antiga casa. Guardar tijolos como lembrança de velhos locais é algo comum pela região. Um dos filhos do poeta Antônio Pereira (1891-1982), Antônio Pereira Filho, conta que corriqueiramente algumas pessoas furtam os poucos tijolos que sobraram da casa onde seu pai cresceu, casou e os criou. “Talvez para colecionar, mas não sabemos ao certo o real motivo dessas ações”, completa o filho de Pereira.

O descendente do Poeta da Saudade, se aproximando da casa paterna, localizada no sítio Jatobá, em Itapetim (PE), não segurou a emoção de voltar ao terreno onde atravessou muitas histórias tristes e alegres ao lado de sua família, revelando, com olhos lacrimejados de reencontro, que, naquele momento, entendia exatamente o que seu pai quis dizer com “Saudade tem cinco fios/ Puxados à eletricidade, / Um na alma, outro no peito, / Um amor, outro amizade, / O derradeiro, a lembrança / Dos dias da mocidade”.

A linha tênue entre o sofrimento e a alegria molda a inspiração desses poetas. “Passei por muitos sofrimentos durante a vida toda. Passamos todos. Praticamente todo mundo que viveu naquela época de seca braba não só precisou interromper os estudos para se dedicar à agricultura, como teve que deixar para trás muito mais”, contou Tenório. Um dos pontos que o poeta pretendia chegar com a fala é a de que houve um tempo onde as regulamentações trabalhistas e práticas assistencialistas não chegavam nem perto do Sertão, ocasionando na necessidade de que inúmeras crianças largassem o já precário ensino básico para ajudarem suas famílias em trabalhos braçais.

O fato de que o descaso social atrelado à consequência do analfabetismo influenciou negativamente o percurso de suas vidas é de consciência dos poetas, afinal, o que não falta para eles é sabedoria. Não só é por que, assim como Leonardo e Antônio, Pedro nunca saiu do Pajeú pernambucano durante toda a sua vida, que admira onde seus filhos chegaram, mas, principalmente, por enxergar que contribuiu diretamente para que eles tivessem a oportunidade e o apoio necessário para seguirem caminhos positivos.

“A enxada aparecia mais do que a caneta, mas só nos ensinaram a usar a primeira. Não escondo que sou orgulhoso pelos que meus meninos conquistaram, pois vejo um pedaço de mim ali, vejo como deus nos ajudou. É como se, ao vê-los, eu pudesse recuperar alguns poemas que perdi por não saber escrevê-los. Por isso rezo por eles. Amém”, completou Pedro Tenório, saindo da igreja.

A segunda reportagem desta série está disponível clicando AQUI.

A terceira reportagem [com vídeo] desta série está disponível clicando AQUI.

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