No terceiro e último dia da série Poetas Analfabetos do Sertão do Pajeú, a busca por reconhecimento e o futuro da preservação dos poetas Leonardo Bastião, Antônio Pereira e Pedro Tenório são abordados. No final do texto, há um vídeo com os poetas.
“A saudade é um parafuso/ Que quando na rosca cai/ Só entra se for torcendo/ Porque batendo não vai/ Quando enferruja dentro/ Nem distorcendo ele sai”. Esta sextilha foi criada por Antônio Pereira há meio século atrás. Agora, é declamada pelo cantor e compositor Maciel Melo, que antes de iniciar a sua fala relutante, pergunta: “Me diga, se um ‘caba’ que cria uma beleza poética dessas pode ser chamado de analfabeto?”.
Ressaltando o nível avançado da estrutura narrativa que há em muitos dos versos desses poetas, Maciel Melo ainda comentou sobre a relação da cantoria com o povo da zona rural e o papel fundamental que o estilo tem de conservar as obras. “A espontaneidade na arte já deve ser louvável, quanto mais na poesia.”
Assim como os passos do poeta José Adalberto e do youtuber Bernardo Ferreira, ambos de Itapetim (PE), outros poetas letrados seguem suas respectivas carreiras sem largar mão da conservação do legado do povo de sua terra. É o caso de Isabelly Moreira, poetisa e escritora de São José do Egito (PE), que viaja por municípios realizando oficinas de cordel e contando sobre o patrimônio histórico dos cantadores.
Outros principais nomes de São José do Egito que procuram direcionar holofotes para as obras e autores de sua região são a Família Marinho – com ênfase para Antônio Marinho, célebre poeta e membro-fundador do grupo Em Canto e Poesia –, e Vinícius Gregório que, além de ter um notável número de admiradores dos seus textos e declamações, é membro-fundador da banda Baião de Nós Três.
Tanto Isabelly quanto Marinho, quando perguntados sobre qual verso de um poeta analfabeto mais os marcaram, responderam: “Canhotinho”. Elísio Felix da Costa, conhecido por Canhotinho, de Taperoá (PB), se destacou pelo peso histórico e social de suas linhas.
“Sigo as pessoas adultas/ Sou testemunha das dores/ Vivo nas sombras ocultas/ Das vidas dos malfeitores/ Herodes, Calígula ou Nero/ Eu os vejo quando quero/ Todas as noites que voou/ Em volta da sombra do medo/ Ao tronco do arvoredo/ Onde judas se enforcou.// Se há uma audiência/ Estou com sete jurados/ Um juiz, uma assistência/ Um réu, dois advogados/ Neste profundo ambiente/ Não tem ninguém consciente/ Que estou por trás da cortina/ Vendo que o código profundo/ Troca a injustiça do mundo/ Pela justiça divina", O Remorso Falando ao Avarento, de Canhotinho, foi o verso escolhido por Antônio Marinho, que finalizou comentando de uma maneira mais abrangente: “Eu acho que esses poetas são a própria memória. Realmente acho que todos que se atrevem nas letras sem ter intimidade com elas nos influenciam pela coragem”, completou.
Isabelly ressaltou que, assim como citado anteriormente nesta série, a quantidade de poetas que não tiveram acesso ao ensino tradicional está por todas as partes, produzindo conteúdo artístico de qualidade. "Recentemente, conheci uma poetisa de São José do Egito chamada Luzia Batista, que foi cantadora de viola, e por ter um problema de nascença de visão, praticamente não enxerga, por esse motivo nunca aprendeu a ler nem a escrever. Contudo, Luzia conhece várias histórias de cordéis. Ela pedia para sua mãe declamar os cordéis e foi desenvolvendo a capacidade de decorá-los com muita facilidade. Até hoje os versos que Luzia cria ficam gravados no juízo. Como se diz: ela faz de cabeça e deixa tudo guardado na cabeça", contou Isabelly, que ainda revelou que ela e o poeta Vinícius Gregório estão colhendo o material da artista para lançar um livro já no ano que vem.
RECONHECIMENTO
Dedé Monteiro, nascido em 1949 no sítio Barro Branco 1, localizado entre Tabira (PE) e Solidão (PE), filho de agricultores, tem seis irmãos e foi o primeiro poeta popular do Pajeú a ganhar o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), no edital de 2016.
Todos os anos, três novos Patrimônios Vivos são nomeados pelo Governo do Estado de Pernambuco, e apoiados com a justificativa de preservar seus múltiplos saberes, fazeres, memórias e histórias. A lei, além de permitir a preservação e valorização das manifestações populares e tradicionais, garante as condições para que sejam repassadas às novas gerações de aprendizes.
O grande impasse desse reconhecimento é que o processo de preenchimento do edital, assim como os demais da Fundarpe, cobra conhecimento aguçado em diversas áreas burocráticas. No caso de Dedé, mesmo sendo um estudioso constante da língua portuguesa, ainda contou com a ajuda de Isabelly Moreira, que lutou para que o título chegasse até o poeta. O questionamento é claro: como um artista que nem se quer sabe escrever poderia ter o mínimo de chance de ser contemplado com esse mérito? A resposta correta poderia ser dada até por uma criança: não pode.
“Enquanto eu e meus irmãos ajudávamos nosso pai limpando mato, catando algodão, entre outras atividades da roça, ouvíamos ele cantando poesias que aprendeu nas cantorias”, contou o Patrimônio Vivo, destacando o analfabetismo do seu pai, enquanto procurava esclarecer a capacidade de reprodução e empoderamento das poesias sertanejas dentro de lares que não mantinham contato frequente com zonas urbanas.
“Acho que deveria ser obrigatório para cada administração municipal, através das suas respectivas secretarias de cultura, cadastrar seus artistas. Ir realmente atrás de todos, para que mais nomes não sejam esquecidos”, opinou Dedé, e, para defender sua ideia, usou o exemplo prático de que “às vezes em uma sala de aula a gente descobre uma criança com uma força diferente para a poesia, imagina então o que poderíamos descobrir realmente procurando. É questão até de fazer justiça”. Dedé, que publicou os livros Retalhos de Pajeú (1984), Mais Um Baú de Retalhos (1995), Fim de Feira (2006) e Baú de Rimas (2010), e gravou um CD de declamações com convidados recitando poemas de sua autoria, ainda sugeriu que o município de Itapetim revitalizasse a casa de Antônio Pereira, para torná-la um ponto turístico.
“Daqui a muitos anos, talvez não procurem pelos políticos e milionários, mas procurem pelos poetas ou por quem fez e faz cultura na nossa região”, finalizou, com convicção.
Detentor de 14 empresas, o empresário João Claudino Fernandes, 87 anos, um dos sócios do Grupo Claudino, é um nome já reconhecido por fomentar projetos voltados para a cultura popular nordestina. Recentemente, Claudino descobriu e se apegou aos vídeos realizados e publicados por Bernardo Ferreira, em especial naqueles que aparecem Leonardo Bastião declamando versos originais. Sem pensar duas vezes, o empresário procurou apadrinhar o desenvolvimento de um livro que pudesse criar e distribuir espaço físico de fala para o material do poeta.
Leonardo demorou para aceitar a proposta de lançar um livro, principalmente por insegurança, já que esta obra seria composta pela compilação de seus versos. Mas, após os poetas de Itapetim (PE) Lenelson Piancó e Wennys Cavalcanti, e o produtor dos vídeos, Bernardo Ferreira, explicarem a importância do registro não só atrelada a ele, como também a toda região, Leonardo cedeu.
Tendo a liberação de Leonardo, e o apoio financeiro de Claudino, Wennys fez todo o processo de transcrição das centenas de poesias que aparecem em dezenas de vídeos do canal youtube.com/bernardogarapa, repassando o resultado textual para os diagramadores ainda no início de novembro deste ano. Cícero Aldo criou as artes do encarte e Lenelson esteve envolvido no passo-a-passo de cada fase da produção. Mesmo sem revelar o tempo de pós-produção, a equipe garantia que o livro será lançado no primeiro semestre de 2018.
Seguindo o mesmo destino, ainda que seu nome já esteja atrelado a outras produções artísticas, Antônio Pereira ganhará um livro que reunirá uma coletânea de seus versos. E poucas pessoas saberiam tão bem escolher qual verso deve entrar ou sair de um livro do Poeta da Saudade do que uma das netas do próprio, Maria Aparecida Braga. Já com o título Meus Versos e Minhas Saudades definido, o livro de Antônio Pereira é financiado pela própria neta e tem previsão de lançamento para o segundo semestre de 2018.
Todavia, a obra de Pedro Tenório continua na mesma condição de quando a reportagem o encontrou pela primeira vez, em janeiro de 2017. Agora, com o agravante de que seus problemas de saúde se intensificaram, fazendo com que ele passe algumas temporadas acamado e outras em pé, trabalhando. Dono das frases mais extrovertidas e esperançosas dentre os três personagens principais desta série de reportagens, na segunda vez que fomos encontrá-lo (junho de 2017), mesmo estando doente sem poder conceder uma entrevista completa, ele escolheu declamar um de seus versos para descontrair a situação e se auto afirmar forte, algo que todos os seus familiares e demais admiradores já sabiam.
“Sou poeta abraçando uma viola/ Eu não vejo doença que me ataque/ Sou uma bomba acabando com o Iraque/ Sou o nego Pelé atrás da bola/ Repentista pequeno não me enrola/ E nem vai estragar o meu caderno/ Sou relâmpago, trovão, eu sou inverno/ Meus braços trabalham, a perna corre/ Quem pensar que me mata é quem morre/ E Satanás lhe abraça no inferno”, completou Pedro Tenório, dando uma gargalhada longa.
Itapetim, São José do Egito (PE), Tabira (PE), entre outros municípios que têm como atração local a poesia e suas raízes, mantêm praças, ruas e até mesmo casas noturnas com nomes em homenagem a poetas que fizeram história enquanto vivos. Antônio Pereira, certamente mais famoso do que qualquer outro poeta completamente analfabeto que se tenha registro no Pajeú de Pernambuco, adquiriu a maior parcela de popularidade apenas décadas após sua morte. A valorização do nome dele foi ocasionada, sem nenhuma surpresa, diretamente por conta do serviço dos cantadores e poetas que atravessaram os anos acreditando e se emocionando com as linhas nostálgicas do sábio e emotivo pensador.
Leonardo e Pedro, assim como Antônio foi um dia, são fontes inesgotáveis de naturalidade e singularidade artística, baseados na potencialidade da oratória metrificada engatada ao entusiasmo das emoções de quem ainda tem o prazer ou desprazer de conseguir observar o mundo com os olhos de quem não pertence a ele. Espera-se, em síntese, que não seja preciso que Leonardo, Pedro, ou qualquer outro patrimônio da cultural popular parta desta vida para que seu nome ganhe o mínimo de reconhecimento, este já merecido há muito tempo.
Catalogando
Legado Filosófico de Poetas e Cantadores Semianalfabetos, do poeta e pesquisador Antônio José, de São José do Egito (PE). No livro, com previsão de lançamento para a Festa de Louro 2018 (4, 5 e 6 de janeiro de 2018), em sua cidade natal, o autor coletou estrofes de 103 poetas entre analfabetos e semianalfabetos que trazem profundos aforismos em poemas que apresentam sentidos comparativos aos de frases de grandes filósofos da história mundial.
Sem se restringir a microrregiões como o Pajeú de Pernambuco ou o Cariri da Paraíba, a obra busca nomes de alguns outros Estados. “O livro vai de Pinto do Monteiro, que é muito famoso, até Paulo Buranga, que é um ‘caba’ que só a gente aqui de São José conhece”, ressaltou Antônio Marinho, poeta egipciense que assina o prefácio do livro.
CONFIRA CURTA-METRAGEM DE JEFFERSON SOUSA COM OS POETAS:
A segunda reportagem desta série está disponível clicando AQUI.
A primeira reportagem desta série está disponível clicando AQUI.