O que significa estar completando 70 anos para quem passou a vida se dedicando à literatura, teve um grave problema de saúde há cerca de sete anos, e superou esta mesma complicação – um AVC – graças à fé e à escrita? Para Raimundo Carrero, que completa hoje sete décadas, este dia é de ponderação. São muitos os questionamentos que vêm com a proximidade do aniversário, inquietando o pernambucano, mas todos eles acabam culminando na mesma pergunta: “Será que eu realmente consegui atingir meu objetivo de questionar, na minha literatura, o tormento humano?” Para muitos de seus leitores e amigos (vide os depoimentos a seguir), a resposta é prontamente “sim”.
Mas, para o próprio Raimundo, a conclusão não é tão clara e nem tão positiva. Perfeccionista, ele relata por telefone, na véspera de seu aniversário e já muito emocionado com as comemorações, que ainda irá publicar sua Grande obra com “g” maiúsculo mesmo, a maior de todas e pela qual será sempre lembrado. “Eu creio que ainda tenho uns 10 anos de vida pela frente, então espero aproveitar esse tempo para atingir esse objetivo. Acho que ainda falta questionamento. Claro que alguma coisa foi feita, mas ainda há reflexão por fazer”, analisa. “Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, Clarice Lispector, por exemplo, conseguiram atingir esse propósito que eu acredito ser o maior na literatura, de uma reflexão séria com qualidade de escrita”, fala, citando algumas de suas referências.
Apesar do dia oficial de seu aniversário ser hoje, Carrero já iniciou as comemorações no início do mês, quando foi homenageado em Salgueiro, sua cidade natal. Por lá é conhecido apenas como Bebé e, apesar de ter se mudado para o Recife ainda adolescente, na década de 1960, o Sertão sempre se fez muito presente em sua obra. Seus personagens, cenários, fantasmas do passado nunca o abandonaram, ao contrário, sempre foram combustível para sua criação artística. As solenidades de homenagem também vão ocorrer na capital pernambucana: nesta quarta-feira mesmo, às 11h, é concedida a Raimundo Carrero a Medalha de Ordem dos Guararapes e, na ocasião, a Fundarpe deve anunciar, junto à Cepe, a programação de atividades comemorativas que vão ocorrer no próximo ano em tributo ao escritor.
Destes 70 anos, mais da metade tem sido retratada, seja de forma autobiográfica – como em O senhor Agora Vai Mudar de Corpo, que escreveu após o AVC – ou de maneira subjetiva, nas páginas de seus 14 romances, dois livros de não ficção e diversos contos. Sobre a maneira com a qual se pode alcançar o que ele acredita ser o destino de uma grande obra, Carrero conclui que existem dois jeitos. “Pelo sucesso e pelo êxito”, explica, para em seguida ressaltar quais as diferenças entre os dois. “O sucesso é um grande equívoco porque é barulhento e engana muito, é a venda, o dinheiro, o best seller. E o êxito é a imensa qualidade, criação e técnica baseadas na evolução e no questionamento, é ele quem faz a alma do leitor se atormentar.” E o tal tormento provocado em que lê só pode ser possível quando quem escreve também o sentiu.
Carrero escreve todos os dias, nas primeiras horas da manhã. As tarde são geralmente dedicadas à revisão de sua produção matutina e as noites a outras leituras. Ele inspira e expira literatura. Precursor das oficinas de criação literária, Carrero foi mestre de muitos escritores contemporâneos e ainda mantém as aulas no seu Centro Cultural, localizado no bairro do Espinheiro.
É unânime na opinião de quem convive com Raimundo Carrero que duas de suas maiores características são a risada contagiante a simplicidade. Autor renomado no cenário nacional, ele já venceu por duas vezes o prêmio de melhor romancista pela Associação Paulista de Críticos de Arte (em 1995 por Somos Pedras que se Consomem e em 2015 com O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo), o Prêmio Machado de Assis também em 95 e o Jabuti em 2000 com o romance As Sombrias Ruínas da Alma, entre outras premiações, mas raramente comenta sobre esses feitos.
Orgulha-se das traduções para outros países de seus livros, das adaptações dos mesmos para o teatro e dos trabalhos acadêmicos voltados à compreensão de seu fazer literário. Atualmente, um grupo formado por Fabiana Pirro, Sílvia Goes e Ana Nogueira está preparando a encenação de Tangolomango após já terem apresentado o primeiro livro de Carrero, A História de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, publicado em 1975 e tido por Ariano Suassuna como o segundo livro do Movimento Armorial (o primeiro sendo A Pedra do Reino). “O projeto Bernarda surgiu como uma forma de aproximar o público de Carrero, que é da área de literatura, do teatro. Uma forma de integrar as linguagens, mostrando para os amantes da leitura que aquela representação saiu de um livro”, explica Ana.
O cearense radicado em Pernambucano Sidney Rocha e o carioca José Castello são dois grandes leitores de Raimundo Carrero. O segundo conheceu o escritor ainda na década de 1990, durante um congresso no Recife. “Na época, em um dessas armadilhas perversas que se disseminam na vida literária, que é cheia de mal-entendidos e de ciladas, dizia-se que eu era seu inimigo, quando eu sequer o conhecia. Nosso primeiro encontro – desmentindo o mito nefasto – foi muito caloroso. Logo me tornei um leitor fervoroso da obra de Carrero. Isso sem dizer que até hoje somos grandes amigos”, lembra o crítico literário.
Sidney, ao contrário, foi primeiro leitor e depois amigo de Raimundo. Para ele, que também é escritor e professor de criação literária, a narrativa carreriana começa a mudar em 1993, com a publicação de Sinfonia para Vagabundos. “Havia lido outros livros dele, antes, mas aquela leitura me fez prestar mais atenção ao seu trabalho. Ali me pareceu que ele começava uma mudança na forma de narrar, impressão que ficou mais clara com Somos Pedras que Se Consomem (1995)”, avalia. “Mas as características mais marcantes do seu estilo e de sua própria visão de mundo já estão presentes nos seus primeiros livros. Um certo desassossego de sentido ao mesmo tempo psicológico e filosófico é sua marca, seja qual for o tempo, seja qual for o livro publicado.”
Ao longo das quatro décadas de escrita, Carrero avalia que, no fundo, permanece o mesmo homem angustiado e cuja inquietude é saciada e externada somente através da escrita. Para Castello, em sua obra confluem “dois aspectos muito importantes, mas em geral vistos como antagônicos: o grande fervor que ele tem na técnica, sua paixão pelo rigor, pela invenção e pela ousadia intelectual, e sua aposta constante em uma literatura viva, que inclui o corpo e as emoções, e que tem o homem sempre em seu centro.” avalia.
Nos últimos meses as manhãs de Raimundo Carrero estão sendo cultivadas para finalizar três obras: dois romances e um livro de contos. Quando questionado sobre o que mais mudou em sua escrita e seu processo criativa, ele primeiro diz que no fundo, nada, já que o incentivo permanece o mesmo há tantos anos. Mas logo em seguida responde: “cada vez que me olho, eu não me reconheço. Não me basta escrever, preciso escrever em busca desse ideal.”