Vigor de Alice Caymmi em show memorável no Recife

Voz, presença de palco e escolha do repertório da cantora emolduram a apresentação de Rainha dos Raios
Bruno Albertim
Publicado em 23/08/2015 às 17:41
Voz, presença de palco e escolha do repertório da cantora emolduram a apresentação de Rainha dos Raios Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem


Em música, a palavra é comumente banalizada. Mas com essa cantora que começa a ter voz infiltrada nas diversas fronteiras do País, o termo readquire sua potência original: neta, sim, de Dorival, mas livre do peso de uma herança, Alice Caymmi é uma estrela. E isso, felizmente, não quer dizer a descoberta do encastelamento.
Alice é uma diva antidiva, não quer o conforto da ovação – embora inevitavelmente o tenha. É uma menina-mulher gulosa para oxidar velhas e gastas fronteiras, não apenas estéticas, mas sociológicas, da música e suas correspondências. Sua presença impositiva erguendo a voz densa, aderente, volumosa de tantas camadas poéticas, derruba os muros. Sim, Mc Marcinho pode conviver com PJ Harvey e Nancy Sinatra. Deve.
  Foi a afirmação de uma grande e corajosa musa iconoclasta o que vimos, na noite da última sexta (21) , quando o show Rainha dos Raios aterrissou no palco do Teatro Guararapes, uma produção contratada para comemorar os 20 anos de atuação de loja multimarcas Dona Santa, com ingressos vendidos ao público a preços populares.
A casa estava cheia. Era o mínimo que se podia esperar para um show realmente fora da curva tão comum em que os grandes e pequenos  fazem muitas vezes apenas retemperar ou exumar a si próprios. Com concepção e direção de um afiadíssimo Paulo Borges para quem os anos de convivência com o oscilante mundo da moda brasileira parecem ter dado o agudo de perceber que estética é argumento, não decoração, o show não apenas sonoriza, mas materializa visualmente a musicalidade.
  Com cinco painéis de led de altíssima geração, figurinos afirmativos e imagens cirurgicamente provocativas,  históricas ou graficamente narrativas, o show é pura sinestesia. Em atuação com atores e bailarinos como o grupo de garotos cariocas que invade o palco numa batalha de “passinho” numa versão cool de Joga Fora no Lixo (o velho
sucesso de Sandra de Sá), o espetáculo parece ter a contundência que nem sempre encontramos nas provocações  museológicas dos bons artistas visuais contemporâneos. Saímos do teatro com a sensação de catarse áudiovisual de um filme de David Lynch.
Sim, é muita informação. Mas a musculatura vocal de Alice inverte o jogo: em vez de emoldurada pelo mosaico de imagens e sons, é sua voz quem dá e dita a moldura daquilo tudo. Vestida como uma Iansã pós-moderna, as cortinas são abertas com ela já cantando a dramática e atemporal Rainha dos Raios, de Gil e Caetano. Dela e de Bruno di Lucco e Domenico, Come Vês É linda: banalmente pop e grandemente épica.

Atropelando barreiras de gêneros, ela nos derrama uma inevitável gota no canto dos olhos com Meu Recado, parceria com Michael Sullivan. O funk melody Princesa, de MC Marcinho, com sua voz, tem lugar certo na
lista da lírica amorosa mais sublime da música brasileira. Bang Bang, de Nancy Sinatra, é uma faca de lâmina dupla com Alice, convertida em vertiginoso teatro nesse momento, antes de um hit do Information Society nos lembrar que a pista é tanto para o corpo como para nossas inquietações.
Acompanhada apenas de um instrumentista, Alice tem a cama (super big size) preparada pelas programações e arranjos de Diogo Strauz,  o homem-orquestra capaz de imprimir camadas sucessivas de possibilidades
e texturas sonoras. Na corajosa interpretação de Homem, a canção ironicamente viril de Caetano, diálogos e sonoplastias de alcova de velhos filmes pornôs lançam, por exemplo,  provocações sobre nossos sexismos.
O ano não acabou – Maria Bethânia nem conseguiu chegar aqui ainda, mas Alice Caymmi muito provavelmente protagonizou o melhor show de 2015 nos palcos locais. E seguramente um espetáculo que pode ser classificado com outro termo meio desgastado, mas reativado por essa estrela sem o pancake da divação. Rainha dos Raios é tão antológico como, em outras temperaturas, o Fa-tal, de Gal, o foi.  Que volte logo ao Recife, nossa velha cidade tão marcada pela dicotomia tradição e modernidade ampliada pelo show de Alice.

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