Era véspera de Carnaval, em 2013. Naná Vasconcelos era homenageado do Carnaval do Recife daquele ano, junto com o fotógrafo Alcir Lacerda. Numa entrevista extensa, na sua casa, para um perfil que seria publicado alguns dias depois no Jornal do Commercio, Naná me disse que ele era o Brasil que o Brasil não conhecia. Mais adiante, compreendi de que Brasil desconhecido por nós e tão representativo da gente Naná se referia.
A música de Naná não toca em rádio do Recife, mas reverbera por palcos do mundo inteiro. Nunca foi fácil para ele ser quem foi. Era preciso desafiar. E assim o fez. Um dos maiores percussionistas do mundo, ele traduziu pela natureza os nossos sons. Da água, do fogo, do vento, Naná fez música. Nos fazia ouvir a chuva, a ventania a calmaria. Uma habilidade de alguém espiritualista, em sintonia com os ancestrais e orixás.
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Naná é marca da nossa negritude. É símbolo dela. Foi pela compreensão de si que ele se transformou no artista que foi. Não buscou nada longe, nada impossível. Achou na sua ancestralidade o instrumento necessário para criar a obra que nos deixa como uma herança de extrema valia, mas ainda desconhecida por grande parte dos brasileiros. Do berimbau, Naná fez solo, fez coro, fez viagens sonoras em uma alquimia inenarrável. O som da terra, o som da gente, o som do mundo. Assim ele conquistou o mundo.
Numa das nossas últimas conversas, em janeiro deste ano, falamos sobre o câncer que afetava seu pulmão. Perguntei a Naná se ele tinha medo de morrer. A resposta foi direta e verdadeira. Não. Naná, homem de uma espiritualidade aflorada e trabalhada, não temia a passagem. Da mesma forma que também não temia qualquer desafio da vida. “A música faz parte do processo de cura”, me dizia. Foi assim que ele se despediu, de fato: tocando. Nesses últimos dias, internado, Naná continuou a compor.
Quando me lembro da frase que Naná Vasconcelos repetia naquela nossa conversa, em 2013 (“eu sou o Brasil que o Brasil desconhece”), me parece inevitável lembrar de Naná e o Carnaval do Recife. E não me refiro apenas àquela ocasião da cerimônia de abertura, na sexta-feira que antecede a folia de Momo, mas às semanas que antecedem aquele ápice
Durante 15 anos, Naná percorreu, semanalmente, um mês antes do Carnaval, 11 comunidades. Bairros da periferia, lugares esquecidos pela própria cidade, ignorados, marginalizados. Percorreu acompanhando ensaios de 11 nações de maracatu de baque virado (em 2016, foram acrescentados três grupos de caboclinhos), os convidados para a grande festa que inicia o período carnavalesco da cidade.
Foi levando os holofotes para cima dessas agremiações que Naná ajudou o Recife a conhecer a si mesmo. O percussionista do mundo abriu as portas das comunidades para outros músicos, para outros recifenses, para outros brasileiros conhecerem de perto a essência nossa que habita naquelas ruas estreitas. "Vai ter culto, moço?", perguntava uma criança num desses ensaios. "Não, vai ter maracatu", respondia o percussionista. “Essa abertura do Carnaval quebrou barreiras sociais que antes existiam. Hoje, há mulheres tocando, há a classe média tocando maracatu, gente do Sul, da Europa e dos Estados Unidos tocando maracatu, vindo para o Brasil vivenciar o maracatu”, contava Naná.
A beleza que resultava desses encontros, no palco do Marco Zero, sempre foi algo indescritível. A alegria daqueles batuqueiros, o som a contagiar quem os assiste, os encontros lindos a que presenciávamos, ali, simbolizavam a riqueza do nosso Carnaval: a singularidade da nossa cultura. Era o povo soltando a primeira voz daquela festa. Os “invisíveis” estavam no centro das atenções. E por mais que a prefeitura do Recife tenha tentado, nos últimos três anos, “mudar” essa cerimônia, Naná e sua Nação resistiram. E ficaram. Como sempre fizemos nós, na resistência de ser quem somos, de estar onde merecemos.
Quando se dizia “o Brasil que o Brasil não conhece”, Naná falava de si, mas de nós também. Era preciso se conhecer, se entender e se aceitar. Hoje, quando li alguém dizer que perdemos o batuque de Naná, pensei o contrário. Não, Naná vive em todos os batuques que soam. Naná vive na nossa cultura, na nossa ancestralidade. “Naná é música, né? Por acaso encarnou como gente, mas é pura música”, resumiu um amigo, dia desses, quando soubemos do internamento de Naná. Sim. Essa é e será a melhor definição. A música se materializou em Naná para trazer beleza ao caos das nossas vidas. Eu lhe pergunto: você já ouviu Naná tocar? É uma das mais lindas experiências da vida. Se nunca ouviu, ouça. Se já ouviu, reouça sempre. Como ele mesmo costumava dizer recentemente: “Do bem, para o bem, amém e amem". Saravá, querido Naná!