GARANHUNS- Depois da abertura minimalista e emocionante com o concerto de Zé Manoel e Virgínia Rodrigues em homenagem a Naná Vasconcelos na noite da quinta, ocupando a Matriz de Santo Antônio, esta sexta foi o primeiro dia do Festival de Inverno de Garanhuns na esplanada da Praça Dominguinhos. Um começo apoteótico: mal iniciou a maratona de shows, o FIG teve, em sua largada, o espetáculo provavelmente mais impactante desta edição. Com Elza Soares, a cidade assistiu, aliás, ao show mais contundente que o Brasil inteiro terá visto este ano.
"A Mulher do Fim do Mundo" é o nome do show com que Elza, quase octgenária, renova e reafirma sua voz como a mais aguda da música brasileira contemporânea. Limitada nos movimentos depois de um trauma de coluna, quase sem andar, é amparada por uma solução cênica que só reforça seu simbolismo de entidade mundana e polifônica.
Sentada num trono-altar, as cortinas se abrem e ela aparece com uma saia-cenário de mais de 20 metros até a boca de cena. Quando começa a cantar, a farta cabeleira encaracolada roxa, os olhos marcados com maquiagem negra, qualquer fragilidade fica para atrás. Não é apenas a voz grave de flexibilidade metafísica. Mas, espírito do tempo que é, todas as vozes do Brasil que se recusa a ser subterrâneo. Elza canta com a voz da diáspora cotidiana. Dos negros sempre mortos antes dos brancos. Dos dissonantes da heteronormatividade. Dos torturados do machismo. Das mulheres espancadas.
Garanhuns não quebrou a regra. Verso a verso, a plateia derramava lágrimas durante a execução de "Maria da Vila Matilde": o libelo de afirmação feminina contra a violência masculina que faz do verso "Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim..." um mantra. Quando finaliza a música com o apelo "Me deixem cantar até o fim", ela não apenas rompe os estereótipos do silenciamento da velhice como, afirmativa, indica que as vozes por ela representada não estão mais dispostas a se calar.
Antes, os versos inevitáveis de "A carne mais barata do mercado é a carne negra" anunciavam o libelo contra o genocídio que ainda patrocinamos no País. Quatro bailarinos negros foram convocados para imprimir atmosfera ao número. É de impressionar: ali, rigor estético e contundência política estão numa simbiose de rosa e espinho.
Também é de impressionar como "A Mulher do fim do mundo", o primeiro dos 34 discos de Elza feito de canções rigorosamente inéditas, consegue adesão tão imediata. "É um milagre, um presente de Deus", disse ela, no backstage, minutos antes de subir ao palco. Seus sambas de DNA carioca e tempero roqueiro ganham imediatamente o coro da audiência com um certo sotaque do rap das periferias paulistanas. Mais que diversão, vimos um show que penetra os ouvidos do cérebro ao corpo que dança em comunhão. "Benedito", canção de um certo sabor da Vanguarda Paulistana dos anos 1980, impregna cada poro com a teatralidade com a qual ela descreve mais um negro assassinado numa periferia qualquer do País.
Antes de Elza, Karina Buhr começou a botar fogo na Praça Dominguinhos com a afirmatividade pós-feminista do show Selvática. Se jogou, literalmente, no palco. Cantou, rastejou, embolou até a boca de cena e politizou cada gesto de sua performance sensualizada. Foi uma noite de uma Garanhuns feminina, de mulheres que sabem - e podem - falar melhor o que precisamos dizer sobre gênero.