Nunca houve na música brasileira um cantor feito o sul-matogrossense Ney de Souza Pereira, ou Ney Matogrosso. Na estrada desde 1973, com o Secos & Molhados, o grupo mais bem sucedido da história do rock brasileiro, centenas de milhares de discos vendidos, repertório tocado no rádio, lotando ginásios, batendo recordes e quebrando regras. Na carreira solo, entrou e saiu de todas, recriando-se e surpreendendo a cada movimento, de cara limpa, maquiado, transformado, é comparado a David Bowie, o camaleão do rock inglês.
Aos 75 anos, Ney não muda de cores para se proteger, feito fazem os camaleões, pelo contrario. Suas mudanças são para se expor, mas apenas no palco. Fora dele, diferentemente de Bowie, é quase um cara comum. Quase, porque Ney Matogrosso não é um cara comum. Este objeto não identificado da MPB é o homenageado da 28ª edição do Prêmio da Música Brasileira, que acontece no dia 19 de julho, no Rio. Ney Matogrosso não é do tipo de cerimônias, de solenidades, mas não hesitou em aceitá-la: "Tem uma hora que não dá pra fugir. Será a primeira vez", explica, em entrevista por telefone.
2017 está sendo um ano especial para ele. Além da homenagem do PMB, vem por aí uma biografia sua, escrita pelo jornalista Júlio Maria (do Estadão, autor de louvada biografia de Elis Regina), a volta aos palcos do Rock in Rio, em setembro, numa parceria com a Nação Zumbi. No show, ele estará com 76 anos (que completará em 1º de agosto) e arquitetando projetos para os próximos anos (atualmente continua com a turnê do disco Atento aos Sinais). Idade ainda é um sinal para o qual as pessoas atentam no show business, já que a indústria do entretenimento privilegia jovens.
"Nem me incomodo, tudo bem, estou mostrando que é possível ter 75 anos, estar na ativa, por acaso eu tenho esta idade, e estou muito bem. Não sou o único, observo que nesta geração tem muita gente nas mesmas condições que eu. Os 70 não é a velhice, é o começo. Não sei até com que idade vou estar no palco. Não delimito nada, o limite será dado naturalmente pelo tempo. Enquanto puder estarei aí. Claro, não preciso ficar até o fim da vida, me requebrando, posso fazer outras coisas. Estou me dedicando muito a atuar, sempre quis ser ator, mas teatro consome muito tempo. Gosto de atuar em cinema. Fiz um filme agora lá em Portugal, Caminhos Magnéticos, dirigido por Edgar Pera".
Na ribalta, Ney se deixa levar pelo personagem que está vivendo naquela momento, mas nada ali é gratuito, nem improvisado. Ele é um artista conhecido pela forma rigorosa como toca a carreira nos mínimos detalhes, incluindo a forma física. Usa depois do 70 anos trajes ousados como fazia quando estava com 30:
"Sou disciplinado, talvez seja porque o que meu pai a vida inteira quis me impor regras quando eu estava dentro de casa, e que eu rejeitava. Acho que me é muito útil descobrir que sou disciplinado porque pra mim é muito bom. Eu como de tudo, não tenho restrição alimentar, mas gosto de comer pouquinho. Não gosto de doce, não é nem que não goste, eu como uma colher e me sinto satisfeito. Eu como pouco, não gosto de me sentir pesado. Sempre fui assim. Não saio da mesa com fome, eu penso que se quisesse repetiria, mas opto por não. Mas não é sofrimento, uma coisa que me custe. Dizem que é o segredo da longevidade, se depender disso eu vou longe", conta, revelando seu segredo
No Rock in Rio I, Ney Matogrosso enfrentou a multidão da abertura do evento, quase despido (incorporou um índio, vestindo uma tanga sumária). Uma ousadia, mas não transgressão. Esta ele empregou no início dos anos 70, com o Secos & Molhados, com o personagem de sexo ambíguo, voz de timbre feminino e requebros, caras e bocas, criando um versão brasileira do glitter rock (o rock purpurinado). Nenhum artista da MPB usou tanto o corpo com tal expressividade nos palcos. Paradoxalmente, fazia isto em plena ditadura militar, com sua censura feroz, que não o impediu de adentrar a sala da classe média via TV Globo, cantando O Vira, no horário nobre, no Fantástico, o Show da Vida.
Apesar da nova cena musical brasileira ter nomes como o paulista Liniker ou o pernambucano Johnny Hooker, Ney Matogrosso lamenta o conservadorismo da sociedade brasileira no século 21: "Eu acho que o Brasil em termos comportamentais deu uma regredida. Não temos mais aquela liberdade individual que a gente tinha no auge da ditadura militar. Hoje tem muita regra. Tem o politicamente correto, que vai ordenando tudo, o que é chato, tem que deixar solto. A pessoa tem que ser solta, e responsável por si. Livre e responsável por sua liberdade. Hoje em dia, por exemplo, eu não poderia cantar Telma Eu Não Sou Gay, daria uma confusão com o tal do politicamente correto", comenta o cantor.
Ele vem apresentando o show Atento aos Sinais sempre de casa cheia. Gritos de fãs irrompem, inevitavelmente, durante canções. Fazem-se filas para vê-lo de perto depois dos shows. Ney Matogrosso confessa que gosta de fãs, trata-os bem, mas não estimula excessos: "Uma vez briguei com uma menina que estava na minha frente, gritando histericamente, eu perguntei pra quê aquilo. Ela achava que eu estava gostando, porém estava me incomodando. Eu fui lá falei com ela, que tomou um susto. Mas geralmente ninguém me importuna. Eu ando na rua. Saio toda tarde. Ontem eu fui no cinema, em Botafogo, com um amigo. Fomos fazer um lanche antes, pedi um sanduíche que era muito grande. Peguei a metade, mandei embrulhar e dei a um homem na rua, um mendigo. Na hora ele não me reconheceu. Atravessamos pro cinema na frente, aí ele falou: Ney Matogrosso! Pegou no meu braço, mas não era nada agressivo, não me incomodou. Eu vou a todo lugar que preciso ir, não deixo de ir. Não sinto necessidade de chamar atenção, prefiro observar a ser observado
NAÇÃO
Embora tenha começado numa banda de rock, e Atento aos Sinais seja um espetáculo puro rock and roll, ele não se considera roqueiro, mas o rock é tão natural em sua vida quanto a mais tradicional MPB: "Eu vi o rock nascer. O rock sempre fez parte da minhas informações, surgi numa banda de rock, embora não exatamente de rock and roll. Eu gosto do rock porque ele é uma porta de liberdade pra mim, me deixa solto pra fazer o que quiser".
É assim que ele volta ao palco do Rock in Rio, em setembro. Estará no Palco Sunset, no dia 22, com Nação Zumbi, uma parceria que se delineava, e já esteve perto de acontecer antes: "Já faz um tempo que a gente, eu e Nação Zumbi, se namora. Convidei eles pra fazer o show Atento aos Sinais, mas estavam comprometidos com a Marisa Monte, então fiz com outra banda. Zé Ricardo (diretor do Palco Sunset), sabendo disso, perguntou se eu toparia fazer um show com eles. Eu aceitei. Mas inicialmente é só para o rock in Rio", diz Ney Matogrosso.
Ressaltando que, ao contrário do que foi propalado, ele não cantará um repertório inteiro de canções dos Secos & Molhados: "Serão cinco músicas dos Secos & Molhados, tem coisas do repertório da Nação, que canto com ela, e vamos fazer também Jackson do Pandeiro, mas não está definido que música. Tem que ser um show de uma hora, um show curto, mas é suficiente, o Secos & Molhados fazia shows de uma hora e dez, por aí".
Mesmo sendo projetado para apresentação única no festival, Ney não descarta a possibilidade do encontro render um vídeo, disco, ou mesmo mais apresentações: "Tudo é possível mas, paralelamente a isso, já tenho um repertório todo montado para o próximo trabalho. Estou na encruzilhada da vida nesse momento, com várias opções de projeto. Por exemplo, fui a Portugal agora e toquei com Pedro Joia, um português que já foi da minha banda. Com Pedro e o trio dele. Foi um sucesso tal que nas matérias dos jornais escreveram que eu deveria ia voltar. Tenho várias opções diante de mim, e não sei o que vou fazer. Por enquanto, o certo é que continuo com o Atento aos Sinais até o final do ano, com shows programados toda semana".