O Cordel do Fogo Encantando sai de dentro da Terra em direção ao sol, amanhã, com o lançamento, nas plataformas digitais, do álbum Viagem ao Coração do Sol, o primeiro desde Transfiguração, de 2006. Reunido depois de sete anos, com a formação original, o CFE volta diferente, de horizontes ampliados. Na canção inicial do disco, Sideral ou Quem Ama Não Vê Fim (assinada por todos os integrantes), cita a melodia Juízo Final (Nelson Cavaquinho/Elson Soares). Mais um disco conceitual.
Como numa premonição, Transfiguração terminava insinuando uma pausa. O que aconteceu quando a banda começava o trabalho de pré-produção da sequência daquele álbum. Um longo intervalo, até a retomada do projeto, que estava com meia dúzia de canções prontas:
“Já havia um caminho melódico e de arranjo. Mesmo as canções antigas foram modificadas, e trazidas para esta narrativa, que a gente chama Viagem ao Coração do Sol, as letras foram todas feitas neste último ano e a concepção dos arranjos refeitas com (Fernando) Catatau. Trilhamos um caminho de uma orquestração, digamos assim, com violões de Clayton, quase todos acústicos, muito violão de aço. Tem uma forte influência do acústico agressivo, de rock trazido por Catatau, principalmente de Jimmy Page. E tem esta ação percussiva de três músicos, mais um quando estou tocando. A outra metade do disco foi composta para este disco”, resume Lira. O disco foi produzido no Recife e em Fortaleza.
Lira (voz e pandeiro), Clayton Barros (violão e voz), Emerson Calado (percussão e voz), Nego Henrique (percussão e voz) e Rafa Almeida (percussão e voz) assinam a maioria das canções do álbum, moldadas pelo produtor cearense Fernando Catatau, escolhido entre vários nomes que a banda procurava para a empreitada que, lembra Lira, foi iniciado há sete anos, por Carlos Eduardo Miranda (falecido no final de março), que assina a produção de Transfiguração.
“Quando a gente começou a preparar o disco, Miranda ouviu as músicas, me orientou na forma de cantar, me deu muita coisa pra escutar. Foi tão importante que, quando decidi sair do grupo, a primeira pessoa a quem contei foi ele. Optamos por outro produtor porque a gente queria ficar no Recife, e ele morava em São Paulo. O próximo trabalho seria novamente feito com Miranda”, revela Lira.
A citada Sideral, assim como as demais que já estavam prontas, foi adaptada ao novo conceito. No original, tinha versos assim, “Chora mãe do que morreu/ chora mãe do que matou”, os de agora se aproximam da ficção de O Homem que Caiu da Terra, estrelado por David Bowie (de Nicolas Roeg, 1976). Lira admite a semelhança, mas não no que pretende expressar no álbum:
“No início a música tratava de um apocalipse urbano, por isso a citação a Juízo Final de Nelson Cavaquinho. Embora o caminho na modificação seja solar, do florescimento, ela continua tratando do elemento apocalíptico, de uma visão sideral. Fala de despregar o espaço tempo/matéria/energia. Fala de uma mãe olhando um filho lançado na terra, caído no chão, só dali pode tocar as estrelas”.
Uma explicação que aponta para um trabalho eletrônico, hermético como um álbum de rock progressivo dos anos 70. Impressão corroborada na abertura de Viagem ao Coração do Sol, intitulada O Sonho Acabou, com efeitos sonoros na voz de Lira, sons “espaciais” ao fundo. “São cinco personagens que estavam adormecidos em casulos no interior da Terra e que, ao despertarem, iniciaram o caminho em direção ao sol. Lá eles querem se encontrar com a filha do vento, chamada Liberdade”, a complexidade termina por ai, dura apenas 24 segundos.
Com exceção da faixa que fecha o álbum, Cavaleiro das Estradas do Sol, instrumental (Clayton Barros, com a viola de doze cordas de Manassés), as demais canções são puro Cordel do Fogo Encantado, violões e percussões sedimentando a base em que se assenta as canções, quase todas bastante melodiosas.
POESIA
A poesia agreste/sertaneja de Lira está pouco visível no álbum, mas continua no seu cerne. É palpável em Eternal Viagem (com participação da atriz cearense Nataly Rocha), ao citar Manoel Filó, lenda da poesia nordestina:
“As pessoas acham que me afastei das minhas raízes, pelo contrário. Sem a ocupação de uma banda, me reaproximei delas. Voltei a declamar em festivais de cantadores, ir para a festa de Louro, em São José do Egito”. Foi numa destas viagens ao sertão, em Petrolina, que conheceu Destilações, de Maviael Melo e Alisson Menezes, a primeira composição não autoral num disco do Cordel do Fogo Encantado.
O hiato de 12 anos entre Transfiguração e Viagem ao Coração do Sol não fez com que os dois discos se diferenciem tanto. Não que a sonoridade seja parecida. Os produtores vêm de estilos diferentes. Carlos Eduardo Miranda era de lançar um teaser e deixar a banda seguir atrás. Catatau é dos que se tornam mais um integrante do grupo, está em várias faixas do álbum, às vezes apenas fazendo um solo, ou tirando acordes de um teclado.
Os integrantes é que estão mudados. Com a parada do Cordel do Fogo Encantado, dispersaramse em outros projetos, pessoais ou de terceiros. Lira, por exemplo, abriu-se para as mais diversas vertentes musicais, e de outros nichos das artes: “Sofri influência da poesia não rimada, e não necessariamente brasileiras”, confessa. Se nos dois primeiros discos, o CFE punha as letras à frente das melodias, e era melhor apreciado visto do que ouvido, pelas performances teatrais, a interpretação histriônica de Lira, Viagem ao Coração do Sol é feito de canções que não exigem palco.
Força Encantada – Ou Largou as Botas e Mergulhou no Céu tem melodia forte e letra melodramática. O subtítulo da canção pertence ao filme homônimo, para cuja trilha foi composta (dirigido, para o Canal Brasil, por Bruno Graziano, Cauê Gruber, Paulo Junior e Raoni Gruber). Embora feita para outro projeto, ela foi “cordelizada” e não destoa do restante do repertório.
Assim como não destoa Raiar ou o vingador da solidão, história de um personagem que volta para o sertão o através da tempestade, pra anunciar uma nova guerra dos bárbaros e um novo raiar, enfatiza o todo maior do que partes, a composição é só de Lira, meio autobiográfica, mas soa como se fosse mais uma criação coletiva: “Esta formação só tem o Cordel. O trabalho da percussão é único, assim como dos violões de Clayton. Ele usou um arsenal de violões. O grupo chegou muito próximo do som do primeiro disco”.
Trabalhou-se também mais o vocal. Clayton faz duetos com Lira, e vozes femininas estão neste trabalho, Gabi do Carmo, Riá, Helena Cristina e Karynna Spinelli, em Do Tambor que se Chama Esperança, Jeyci Viana, em Raiar ou Vingador da Solidão, e Nataly Rocha, em Eternal Viagem. Há momentos em que os vocais evocam o hoje cultuado rock rural de Sá, Rodrix e Guarabira, pelos violões desplugados e belas harmonias vocais de Pra Cima Deles Passarinho ou Semente Brilhante (com participação de Rian Batista, da Cidadão Instigado). Com idêntica linha é Primeira Paisagem ou Flor Molhada (dedicada a Naná Vasconcelos, que produziu o álbum de estreia da banda).
Um disco quase todo redondo. Discrepâncias na coerência estética do repertório, porém, acontecem. Primeiramente, na declamação que o inicia. Os efeitos, emulando uma suposta nave espacial, são dispensáveis, Lira começou a declamar em público há 30 anos, não precisa de muletas sonoras. Depois na interpretação amaciada, romantizada, de Destilações, em que os teclados suaves esbarram no violão furioso de Clayton Barros.
O grupo já montou o show, que começa em 21 de abril, em Salvador na Concha Acústica, do Teatro Castro Alves, e aterrissa no Recife, no Clube Português, no dia 28. Uma turnê organizada e administrada pela banda, que alugou os locais onde vai se apresentar. Cenários, iluminação, toda logística é da própria equipe.