Angélique Kidjo, africana do Benin, ao regravar na íntegra o álbum Remain in Light, da banda Talking Heads, de 1983, não fez apenas seguir uma tendência de uma época, em que música autoral toca muito pouco no rádio ou TV. Tem banda regravando os próprios discos. Neste remake. Angélique joga na roda uma nova discussão sobre apropriação cultural. Faz a apropriação da apropriação, ao mesmo tempo em que se apropria
de música americana e do afrobeat nigeriano.
Quando Paul Simon, em 1986, foi à África do Sul, desobedecendo ao boicote que se articulou contra o país, onde ainda era vigente o vergonhoso sistema de apartheid, desabaram sobre ele criticas pesadas. Não apenas por furar o bloqueio, mas também por estar praticando o que se chamava então de colonialismo cultural. Apropriando-se da música de um povo, levando-a para os Estados Unidos, e mesclando-a com outros gêneros. Seria o caso de se criticar Picasso por se inspirar na arte africana para revolucionar a pintura ocidental, e descartar o seminal Les Demoiselles d’Avignon, como apropriação indébita. Uma discussão que se prolonga ad infinitum, de acordo com o ponto de vista dos debatedores.
Paul Simon, apropriação à parte, empregou elementos da música da África do Sul no álbum Graceland, hoje um clássico da música pop. E ao mesmo tempo trouxe para músicos do país a atenção mundial, tornando conhecido não apenas alguns gêneros musicais, como cantores e grupos como Ladysmith Black Mambazo. O exemplo mais famoso no tema é o dos Beatles e a música indiana. Uma breve estadia do quarteto no país despertou o interesse pela Índia, que foi bem além da música. Uma influência que perdura até os dias atuais. No início de 80, David Byrne, então no auge com os Talking Heads, imergiu na cultura africana, em livros e discos, sobretudo de Fela Kuti. Com a produção e incentivo de Brian Eno, o Talking Heads empregou a mesma fórmula de Chico Science, ao trazer ao universo da música pernambucana elementos de rap, funk, rock. Não fez uma justaposição das duas culturas, mas uma aglutinação, tornando-as uma terceira música.
Remain in Light foi quase unanimidade de crítica, e comercialmente muito bem sucedido. Once in a Lifetime, o hit do disco, tocou mundo afora. Em 1983, saindo do Benin, então penando sob uma ditadura, para morar em Paris, a cantora Angélique Kidjo passou a consumir vorazmente música pop. Escutar música estrangeira no Benin em que viveu era considerado um ato de traição à pátria. Ela conta que, nos seus primeiros dias de em Paris, se sentiu feito criança numa confeitaria, não sabia que disco pegar. Escutava de tudo, o dia inteiro.
Fixou-se num em particular, o citado Remain in Light, porque captou ali sons da África, onde a maioria escutava um ótimo álbum de rock. Angélique Kidjo (que esteve na abertura do Carnaval do Recife, em 2012, como convidada de Naná Vasconcelos) levou Remain in Light de volta à África, regravando-o na íntegra, e fazendo deste o seu melhor álbum.
Angélique era criticada exatamente por apresentar pouco de suas origens em seus discos, ironicamente, agora é coberta de elogios por gravar um disco de um americano. Ao gravar canções de forma convencional, ela se confirmou como uma grande cantora, sem dúvidas, porém uma a mais entre as muitas ótima cantora dos EUA. Na africanização de Remain in Light, ela conseguiu um resultado tão bom quanto o de David Byrne ao americanizar sonoridades africanas.
O coral que abre Born under Punches, faixa inicial do álbum, remete às vocalizações da África do Sul, e em Crosseyed and Painless tem o baterista nigeriano Tony Allen, que foi diretor musical da África 70, a banda de Fela Kuti. A canção, sem que a melodia seja modificada, torna-se um autêntico afrobeat, porém mais contemporâneo. Ritmicamente, o remake de Remain in Light é muito mais rico, e dinâmico do que o da Talking Heads. São muito mais acentuados os diálogos entre os metais, canto e contracanto dos vocais de apoio. Enquanto Angélique Kidjo mexeu também nas letras, parte delas cantada em idiomas africanos que ela domina, e não apenas do Benin.
Em Seen not Seen a canção é reprocessada de forma perfeita. Com os Talking Head é aberta com uma percussão pesada, para a entrada de Byrne falando suavemente a letra. No remake é aberto com um coro de muitas vozes, percussão mais simples, e Angélique também entra falando, voz à frente, capricha no sotaque, metais em uníssono, o coro canta em um idioma do Benin, ela canta em inglês. Um destaque do disco é o baixo de Pino Palladino (Pink Floyd, Eric Clapton, D’Angelo), um dínamo. É ele que guia os demais músicos em House in Motion, totalmente refeita. No álbum original está mais perto do pop. Angélique Kidjo a canta em um idioma beninense, num diálogo constante com o naipe de metais, e o baixão na marcação, sem pausa. O melhor arranjo do álbum.
David Byrne aprovou o remake do álbum, tanto que fez uma participação num dos shows do disco, apresentado por Angélique Kidjo antes de gravá-lo. Não haveria como não aprovar. Já fizeram regravações de discos inteiros, mas raramente igual a Remain in Light. Angélique consegue reprocessar as canções, sem transgressões, nem reverências, dá-lhes inteligentes reinterpretações e novas roupagens. Não é improvável que finalmente chegue ao grande público americano (e daí ao mundo), com sua versão do maior hit de Remain in light (e dos Talking Heads), Once in a Lifetime, onde o ritmo se sobrepõe à melodia, mas com um balanço irresistível.