“Encontrei Xangai um dia desses no aeroporto e ouvi alguém falar pra ele, olhaí o cantor. E Xangai retrucou: cantor, não, cantador. Aquilo me chamou atenção. Um tempo depois me encontrei novamente com Xangai e disse pra ele que estava fazendo minha passagem de cantor pra cantador. Mas eu não sou ainda aquele que leva em conta o rigor da métrica da cantoria, do cordel, porém estou entrando neste universo pra valer”.
Quem faz a transição de cantor para cantador é o baiano, de Ituaçu, Moraes Moreira, que está com disco novo, Ser Tão, com selo da Discobertas, onde além de cantador é também sambador. E aplica o que vem aprendendo de poesia oral nas canções. Em Evolução, cantada com ponteado de viola caipira, tocada por Alexandre Reis (também produtor do disco),
Moraes emprega o dodecassílabo: “São versos alexandrinos, doze sílabas cada verso, é difícil de fazer. Fala da evolução desde quando o homem tinha medo do trovão, achava que era deus. Depois vieram os físicos querendo explicar o mundo”, explica. Ele recorre à viola caipira, num pagode sertanejo, enquanto discorre sobre cordel e cantoria, em De Cantor para Cantador: “Eu queria ter nascido lá na Serra do Teixeira/ Para ter surpreendido muito cantador na feira/paraibano seria/para cobrir de poesia/toda a nação brasileira”.
“Quem inventou esta moda de samba foi a Bahia, e lá tem o sambador, mistura de sambista e cantador, o partideiro tira os versos com o rigor do cordel, na métrica, rima, oração. O Roberto Mendes, que é mestre de Chula, de Santo Amaro, me dizia que o meu violão tem muito de chula”. Ele se refere à faixa inicial de Ser Tão, o samba chuleado Sambadô – Deixa o pé no chão, cujo subtítulo vai na contramão da axé music. “Eu falo inclusive que no samba de Santo Amaro, ao contrário do que diz o pessoal do axé, o grande lance é deixar o pé no chão, feito no samba de roda, no coco”, diz Moraes Moreira. Ele continua a animar o Carnaval da Bahia, porém não mais no circuito Barra/Ondina:
“Eu participo só de trio parado na Praça Castro Alves, ano passado toquei lá, e depois fui pro Recife. O circuito ficou chato, muito cheio de camarote, gente de todo lado, o lixo do Brasil vai pra Bahia. Eu não fico bem neste contexto. Toco onde quero, me dei a oportunidade de escolher onde quero tocar, e a Castro Alves é a minha preferida. Estava acabada e agora voltou a ter gente, como antigamente. No meu show estava completamente cheia.
NA RIMA
A aproximação de Moraes Moreira com a poesia oral nordestina tem, pelo menos, 15 anos. Em 2005, por exemplo, ele lançou o álbum De Repente. Uma das faixas desse disco, Palavra de Poeta lembra Origens, que está no disco como “um cordel de raiz peninsular”. Em ambos Moraes cita nomes de poetas, de gabinete e do improviso. Ocupante da cadeira 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (que tem como patrono Manoel Monteiro, pernambucano de Bezerros), Moraes Moreira, em 2008, escreveu A História os Novos Baianos e Outros Versos, um cordel, mas no formato de livro, que virou turnê.
Ele ocupa também o cargo de diretor cultural da academia, que tem nomes bem conhecidos como Bule Bule, Beto Brito e Téo Azevedo, e tem cordelistas das mais diversas regiões do país. Moraes Moreira, no entanto, não se limita ao cordel, nem sua inspiração vem apenas dos vates nacionais. Em I Am The Captain of My Soul ele pega o mote de empréstimo ao poeta inglês William Ernest Henley (1849/1903) em seu poema mais célebre, Invictus, de 1888: “Mandela usava esta frase como mantra no cárcere: ‘ Eu sou o comandante da minha alma’, fiquei encantado por estes versos, peguei o violão e comecei a cantar, e a música foi criada em redor deste refrão. Quem faz a gaita é Ivan Brzezinski, um cara que toca na rua. Pensei inicialmente em Rildo Hora, mas me disseram no estúdio que no dia anterior tinha tocando pra caramba. Trouxe o cara e ele solou pra cacete”, conta Moraes. I Am The Captain of My Soul é um blues com tempero country, com guitarra slide.
Do tropicalismo, Os Novos Baianos aprenderam a lição de que qualquer estilo musical vale a pena. Moraes Moreira continua achando que vale. Depois de um blues, ele surpreende com Amor e Arte, uma toada: “Tipo Preta Pretinha, toada gonzaguiana, com clima nordestino, que vem dialogando sanfona com viola. Este é o sertanejo nordestino, não universitário”. Gonzaguiano convicto, desde os tempos em que aprendia as músicas de Lua no rádio ou nos alto-falantes nas ruas de Itauçu, Moraes Moreira inclui no disco Nordestino do Século, um cordel que escreveu para o Rei do Baião há 16 anos:
“Declamo só com a sanfona, fazendo um clima gonzaguiano. Ele foi feito quando passei por Recife, em 2002, e me disseram que Luiz Gonzaga tinha ganho o título de nordestino do século, fiquei com aquilo na cabeça. O nordestino do século é o nosso rei do baião. Fiquei louco pra gravar, mas então veio a reunião dos novos baianos e tive que esperar”, conta Moraes.
Moraes Moreira é da geração que amealhou sucessos e legou clássicos para a biblioteca musical da MPB, o suficiente para fazer show com um repertório de músicas que a plateia sabe de cor e canta em coro. Este tempo passou, e ele o relembra na faixa Nas Paradas: “ É até uma ironia, porque tem o negócio do cantor e do cantador. O cantor é das paradas, do glamour. Achei interessante pra mostrar o meu lado das paradas de sucesso, tudo isto que já tive. Tá difícil entrar hoje, porque o rádio ficou muito ruim, tudo a base de jabá. Mas eu entro em outras coisas. Com este disco, vou pra bienal, no espaço de cordel e repente. Fiz recentemente a Flipelô, feira de livro no Pelourinho, em Salvador. Vou caminhar por outras coisa da própria cultura, até junto com cantadores mesmo. Abri outro flanco na minha carreira. A internet está aí pra isso”, reafirma-se.
Ser Tão é um trabalho pra cima, o que é uma característica de Moraes Moreira desde Os Novos Baianos, e este disco, além de alto astral, é também um dos seus trabalhos mais diversificados. Os 70 anos, completados em 2017, são comentados em Alvorada dos Setenta, aberta com a declamação de um cordel (“todo e qualquer desafio/ encaro como poeta/pra quem a vida interpreta/ o tempo se reinventa/não me derruba a tormenta, no traço de cada linha/aqui vou deixando a minha/ alvorada dos setenta”). Ao fim dos versos, irrompe uma banda de música tocando um dobrado meio frevo:
“É a alvorada da batucada da festa da padroeira, com banda de música, dobrados, fogos de artifícios. É esta memória que me veio neste momento. Termina com fogos de artifícios, da festa da padroeira, que está na minha memória desde criança”. Entusiasmado com o novo disco, Moraes Moreira dá uma parada temporária em sua participação com Os Novos Baianos, que festejou bem festejado os 40 anos de Acabou Chorare. Ele começou os shows de Ser Tão no Rio e em São Paulo, em seguida viaja pelo Brasil com uma banda formada por sete músicos. Enquanto isso continuará compondo com Galvão, parceiro de longas datas: “Dentro do contrato que Os Novos Baianos fizeram com a Som Livre devemos ainda um disco de inéditas. A gente esta compondo as músicas, mas só vamos gravar em 2019, ou talvez 2020, nos 50 anos do grupo