O mineiro Daniel Lopes Saraiva nasceu no mesmo ano em que Nara Leão morreu, mas desde criança ela foi uma das cantoras que mais escutava em casa. Sua Mãe é fã de MPB e um dos seus tios é dono de um grande coleção de LPs. Quando foi fazer a dissertação de mestrado do curso de História, na Universidade Federal de São João Del-Rey, ele escolheu Nara Leão como tema. Porém não queria fazer apenas mais uma biografia da cantora capixaba (que até seria bem-vinda, existem somente dois livros de fôlego sobre ela).
Saraiva optou pelo viés da artista engajada, transgressora, presente nos principais momentos da música popular brasileira, desde a bossa nova (que praticamente nasceu em sua casa, o que Nara desmentia). Intitulada A Música Brasileira em Pessoa - Trajetória, Engajamento e Movimentos Musicais na Obra da Intérprete Nara Leão, de 2015, vira livro, rebatizado de Nara Leão – Trajetória, Engajamento e Movimentos Musicais (Letra e Voz).
O autor concedeu entrevista ao JC sobre o livro, que será lançado amanhã no Rio. JC – Dissertações geralmente acabam em livros, com alterações para torná-las mais próxima da literatura convencional. O que você alterou na sua?
DANIEL LOPES SARAIVA – A estrutura é a mesma. Mudei o formato, acrescentei alguns tópicos e tirei a parte excessivamente acadêmica. Há também fotos cedidas pelo ex-companheiro de Nara Leão, Marco Antonio Bompet, algumas fotos do acervo do Museu da Imagem e do Som-RJ. Fui também no Arquivo Nacional de Brasília onde pesquisei nos documentos sobre a cantora.
JC – Por que Nara Leão, entre tantas as cantoras brasileiras?
DANIEL – Ouvi muito Nara Leão em casa, minha mãe tem uma cultura muito musical, meu tio meu gosta muito de MPB, então quando fui escolher um objeto de pesquisa do mestrado, eu queria trabalhar com música, disse que estava pensando em escrever sobre Nara, a orientadora achou que era um ótimo personagem. Também achei que seria uma boa ideia. Durante a pesquisa o que me chamou atenção foi isto: ela é conhecida como a musa da bossa nova, a cantora da bossa nova, mas a carreira dela é muito mais do que isto. Se você for analisar todos os discos, que o que faço no terceiro capítulo, você vai ter um mapeamento da música brasileira, nos anos 60, 70 e 80.
JC – Nara surpreende sempre nos seus discos dos anos 60.
DANIEL – Ela quebrava paradigmas. Na bossa nova, grava um disco com sambistas, ou cantores do nordeste. Estava na música engajada, mas participa da Tropicália. Ninguém da musica engajada participou da Tropicália. Só ela participa do disco tropicalista. Em 78, grava um disco só com música de Roberto e Erasmo. A primeira vez que um artista grava um disco só com musicas deles. Gal e Bethânia gravaram antes dela, mas não álbuns inteiros.
JC – Como está traçada a narrativa?
DANIEL – Minha ideia foi primeiro fazer uma trajetória biográfica, na segunda parte, pegar o engajamento, nas entrevistas nos discos, e o terceiro mostrar que Nara, além de cantora, era pesquisadora da música brasileira. A partir do repertório dela, quais os cantores que gravou, o que gravava, o por quê de gravar aquele artista, naquele momento. A ideia também foi de colocar depoimentos de pessoas próximas a Nara, conversei com muita gente, com Cacá Diegues, rapidamente, num evento, mas ele me contou como foi no exílio. Falei com Roberto Menescal, com a filha dela, Isabel, com Marco Antonio Bombet, o último companheiro de Nara, com artistas, pra entender um pouco qual a imagem que estas pessoas tinham da Nara, o que não está muito presente nos outros livros.
JC – Nara Leão fez as declarações mais fortes, entre os artistas da MPB, contra os militares, ao Diário de Notícias. Disse, literalmente, que “o Exército na vale nada”. Sofreu represálias? DANIEL – Houve reação, alguns setores defendiam a prisão de Nara. Artistas e intelectuais assinaram um manifesto para o marechal Castelo Branco a fim de que ela não fosse presa. Drummond fez um poema. A repercussão foi internacional.
JC – O livro chega às livrarias num momento de efervescência política, de polarização. O lançamento tem a ver com o clima do país?
DANIEL – Tem, mas não foi nada programado, o convite surgiu da editora, um pouco mais de um ano atrás. Depois de acertado, eu voltei a fazer outras entrevistas, peguei também outros depoimentos, para transformar a dissertação em livro. Apesar que de ele é muito oportuno neste momento, porque Nara foi uma artista que lutava pela liberdade de cantar o que quisesse, do jeito que quisesse, uma mulher dona de si, num momento em que existia muito machismo. Uma mulher à frente do seu tempo. Mas não foi nada premeditado, foi uma coincidência do destino só ter ficado pronto agora. O que é muito triste é ver que pessoas como Nara terem lutado muito para o país ter liberdade de expressão, e muita gente não valoriza isto hoje. Não tem nem ideia do que aconteceu, que muita gente foi perseguida, morta, teve que se exilar. Nara foi para Paris porque era uma das pessoas mais visadas pelos militares. Acho que falta se entender um pouco a nossa história para ser mais crítico.
No prontuário de Nara Leão, compilado pelo SNI, as ações da cantora no engajamento contra o regime instalado em 1º de abril de 1964, começam em 1963 como “Membro fundador do Comando dos Trabalhadores Intelectuais (C.T.I) – organização de frente comunista”, com a ação mais grave sendo uma entrevista concedida por ela, ao Diário de Notícias (Rio de Janeiro), em 21 de maio de 1966 – “Manifestou sua opinião pela extinção do Exército”. As Forças Armadas estavam com dois anos de poder, ainda “arrumando a casa”, sob liderança da ala moderada. A entrevista seria impensável dois anos mais tarde.
Entre outras declarações, Nara Leão defendeu um civil no poder, explicando: “Os militares podem, talvez, entender de canhão e metralhadora, mas de política não entendem nada”. Além da entrevista, mais um agravante, Nara Leão era cunhada de um dos principais inimigos do regime, o jornalista Samuel Weiner, então asilado na França.
A mulher que se atreve a criticar tão fortemente o regime comandado por um marechal não bate com o que a maioria das pessoas sabem da cantora de voz pequena, aparentemente tímida, musa da bossa nova. Esta imagem menos conhecida de Nara Leão (1942/1989) é enfatizada no livro Nara Leão: Trajetória, Engajamento e Movimentos Musicais (Letra e Voz, R$ 34). A aparentemente frágil capixaba (de Vitória) em 1966 tornou-se ídolo nacional com A Banda, de Chico Buarque, do qual se tornou a intérprete mais constante. O historiador Daniel Saraiva divide o livro em três fases: “Nara pede passagem: A trajetória musical da intérprete”, “Opinião de Nara, de musa da bossa nova a artista subversiva”, “Meus amigos são um barato: A busca pela música popular .” O autor enfatiza a importância que teve na personalidade de Nara Leão, e da irmã mais velha Danusa Leão, o pai delas Jairo Leão, advogado bem sucedido.
A forma de doutor Jairo (como era tratado pelos amigos das filhas) educar era extremamente avançada: pouco se importava com diploma, ensino formal. Preferia contratar professores pra dar aulas às filhas em casa. Nara Leão deixou a escola com 16 anos. A irmã Danusa Leão, dez anos mais velha, com a mesma idade já era a modelo mais bem paga do país.
Musa da bossa aos 17 anos, quatro anos mais tarde, Nara Leão militava na esquerda, No Centro Popular de Cultura, o CPC da Une, um do vários CPCs que surgiram pelo Brasil inspirado no Movimento de Cultura popular, o MCP, criado, em 1960, na gestão de Miguel Arraes na prefeitura do Recife. Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e Sérgio Ricardo, seus amigos bossa-novista passaram a fazer música participação (ou de protesto), e Nara Leão foi a intérprete destas canções com mensagem, e abertamente o regime instaurado no país em 1964. “Chega de Bossa Nova”, bradava. “Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho”, declaração à revista Fatos & Fotos quando rompeu publicamente com a bossa nova.
O LP Opinião (1964) de Nara inspirou o diretor de teatro Oduvaldo Viana Filho a escrever o engajadissimo e clássico musical Opinião, com ela, João do Vale e Zé Keti. Em 1968, quando a linha dura promulgou o AI-5, Nara Leão militava nas hostes da subversiva Tropicália (única estrela da MPB a fazê-lo) Em 1969 avisaram-lhe que os militares a tinham sob mira. Ela e o marido, o cineasta Cacá Diegues, saíram do alvo mudando-se para Paris. Voltariam dois anos mais tarde. Nara ainda engajada, e apaixonada pela música, como foi até o final da vida. Morreu com 49 anos, escrevendo uma trajetória das mais importantes e íntegras da cultura brasileira.