“Eu consegui desagradar a todos os poderosos desta região, tanto da esquerda quanto da direita. Como eu não sou amigo do rei, nem bobo da corte, vou seguindo meu caminho, eu sou empreendedor. A direita não quer papo comigo porque meu discurso é libertário, inconformado; já a esquerda quer súdito, não quer aliado”, o comentário é do cearense, do Crato, Alan Salles, 58 anos, desde os oito morando no Recife. Difícil encontrá-lo sem um violão e uma bolsa recheada de cordéis. Presença frequente em bares e mercados públicos do Recife desde, pelo menos, os anos 1980. Compositor, cantor, e poeta. Músicas acha que tem umas 150. Folheto de cordel deve ser recordista, estima já ter escrito 800 títulos:
“Sou cordelista 24 horas por dia, faço muito por encomenda. O cordel veio da cantoria de viola, os repentistas criaram seu próprio suporte sonoro musical, suas melodias e suas toadas. Por que eu não poderia, a exemplo do que Zé Ramalho e Alceu já fizeram, compor a partir do cancioneiro popular. Comecei a pegar poesias de formas fixas, sextilhas, de décimas, até de onze, o galope à beira-mar, comecei a musicar. Botei xote nisso, fado, até maracatu blues. Fiz um galope à beira-mar em blues”, conta Alan Sales, que atualmente se apresenta com o poeta e declamador Marlos Guedes:
“Fazer um recital de poesia autoral, e o pessoal parar para ouvir é difícil. Nosso trabalho linka música com poesia. Musicamos poemas nossos e de outros poetas, montamos uma espécie de revista poética-musical, em que a gente faz ora poesia da gente, ora a de Ascenso Ferreira, Carlos Pena Filho, os poetas telúricos, Patativa do Assaré e um poeta do Rio Grande do Norte, Antonio Francisco, pouco conhecido, mas talvez tenha a mesma dimensão de Patativa de Assaré”.
Allan Sales tocava na noite e dava aulas de violão no Sesc até que, no final da década de 80, recebeu encomenda de uma trilha de um espetáculo com temática nordestina. Quando precisou criar um cordel viu que não sabia quase nada do formato, muito menos da poesia oral da região. Agiu como a maioria dos que fazem cordel deveriam agir. Aprender a técnica com um especialista:
“Fui procurar um grande amigo, de São José do Egito, Neném Patriota, sobrinho de Job Patriota. Ele esteve lá no Sesc, deu régua e compasso a nosso grupo. Porém, a partir daí eu sabia como funcionava, mas não o que escrever. Usei poesia de forma fixa, escrevi trechinhos, pequenos poemas pra brincar com as pessoas, ia ao Mercado de São José comprar cordel, mas não achava o meu caminho. Foi quando em 1999 houve aquela polêmica de Roberto Magalhães com Francisco Brennand. Então teve uma celeuma por que fiz um cordel que dizia que Brennand era um artista do cacete, fez sucesso. Aí achei finalmente meu caminho, o do repórter. O cara que vê os fatos do cotidiano, e relata no cordel. na época os cordelistas escreviam muito sobre um sertão imaginário, reescreviam velhas histórias a seu modo. Eu não queria fazer aquilo”, argumenta Allan Sales.
Quando se Sales tornou cordelista, este gênero já não vendia tanto, ao contrário do que acontecia até meados dos anos 70, quando o poeta tirava uma edição de alguns milhares de cópias, e viajava pelo Nordeste para vendê-los. Nos anos 80, o povão, maior consumidor de folheto de feira, perdeu o interesse, com acesso mais acesso à informação TV em casa. Os repentistas deixaram o formato, deixaram de ir às praças, abandonaram o formato. As editoras continuam publicando cordel, que distribuem por bancas de revistas, onde são comprados, geralmente, por turistas:
“Eu mesmo me publico, não tenho vínculo com editoras. Aprendi a fazer xilogravura, e me tornei independente editorialmente. A hora em que quiser é só acessar no computador. Qualquer cordel meu, tenho todos eles no computador. Nunca abri mão da tecnologia não”, diz Allan Sales, que estreou no cordel em 1989.
“Não queria repetir as mesmas fórmulas, falar de Padre Cícero ou da seca. A seca é um fenômeno recorrente, existe tecnologia que permite conviver com ela. Passaram a achar que eu tivesse deturpando a verdadeira raiz da cultura nordestina. Sou um cordelista, talvez não tradicional, daqueles que aprendeu com o avô nas feiras. Eu sou um músico que pesquisou e aprendeu a fazer cordel, se isso não é ser original, não estou preocupado. Se eu não sigo os cânones da tradição digamos sertanófila, que reduz a identidade nordestina a vaqueiro, cangaceiro e forró. Temos muito mais coisa. E o samba de roda da Bahia? Onde fica o maracatu, o frevo, onde está o negro dentro do cordel? A contribuição da cultura africana no Brasil é monstruosa”, polemiza Alan Sales.
Os temas a que Alan recorre são os mais diversos possíveis. Uma coletânea de piadas, publicadas no extinto semanário carioca O Pasquim, rendeu um cordel, no item inspiração ele é completamente imprevisível:
“Bolsa de Mulher é um texto de humor. Peguei uma música de Caetano Veloso e escrevi Americanalhando, uma brincadeira com a cultura de massa. Fui fazer a abertura de um lançamento de livro de uma psicóloga. Eu tinha pago duas cadeiras de psicologia na universidade, quando cheguei em casa fiz um cordel que fala de Freud e sobre Jung. O Bolsa de Mulher de que falei surgiu com um episódio real. A moça ia me comprar um cordel, abriu a bolsa começou a mexer lá dentro procurando um real, não achou. Ganhei mais um cordel. Meu trabalho fica no universo do paradidático, o humor, a crítica de costumes”.
Com tanta produção, Alan tem apenas um disco: “Gravei um disco chamado Politicamente Incorreto, em 2008, e Poemas e Canções francofonia do Brega, de 2013. Neste CD tem Garçom, de Reginaldo Rossi, em versão que fiz para o francês, Le Barman. Foi feito numa gravadora evangélica na Dantas Barreto”.
Alan Salles é um raro exemplo de um artista que consegue de poesia e música autoral sem sair do Recife. Recentemente fez um projeto Sesc de circulação, em Goiás, Santa Catarina e no Piauí, mas foi uma exceção na sua rotina. Ele conquistou seus espaços na capital pernambucana. Atualmente se apresenta na Vila Ritinha, na Boa Vista, no Orquidário, no Pina, ou no Beco Nu, no Mercado da Boa Vista. Aproveita os shows para vender seus cordéis. Uma das atividades que aprecia fazer são as oficinas, sobretudo em escolas:
“Não faço plano de aula. Tem hora que peço um tema para um poema. Uma vez deram Rebolation. Fiz: “Rebolation é uma dança que no palco contagia/ quem dançou o rebolation/ faz isso com alegria/ eu prefiro dançar frevo/ do que coisa da Bahia”. Trabalho com comunidade carente. Este pessoal só tem dois pontos de formação, a TV e a internet, eu tenho apostila que ensina técnica, mas o que vai ser gerado ali só Deus sabe”, comenta Allan Sales, citando que estudantes lhe sugeriram para glosas: “Pediram Lady Gaga e depois Michael Jackson”. As duas glosas feitas por Allan: “Lady Gaga tem talento/ com certeza é bonitona/ quando sobe ali no palco/ esta doida até detona/ mas a rainha do pop/ com certeza ainda é Madonna”. Para o de Michael Jackson: “Era preto ficou branco/ tinha grana e tinha tédio/ os seus sonhos alucinados/ sempre em cima com assédio/ mas morreu louco e doente/ de tanto tomar remédio”.
Nas oficinas de cordel, Allan às vezes dá conselhos aos jovens que pretendem também escrever cordéis: “Conheça primeiro o repente e suas técnicas, entenda. Às vezes o cara é poeta, mas não tem a técnica. Foi assim que comecei, aprendendo com Neném Patriota, mas onde pude entender estas poesias de formas fixas, foi com os repentistas, que é o fundamento de tudo. Quer conhecer parte de um universo? Tenha a humildade de reconhecer a própria ignorância”.