O episódio foi contado e recontado por Elza Soares. Ela enfrentava o irascível Ary Barroso, em seu programa Calouros em Desfile. No ano de 1953, a adolescente, magérrima, mal vestida, levou o compositor de Aquarela do Brasil a um chiste impiedoso, para divertir a plateia. Olhou para ela e perguntou: “De que planeta você veio?”. A menina foi rápida: “Do planeta fome”. Em poucos anos, ela conseguiu emigrar desse planeta, tornou-se cantora de rádio. Há 60 anos estrearia em disco, com dois 78 rotações, pela pequena Rony, e pela Odeon. O primeiro passou em branco. Com o segundo emplacaria o sucesso inaugural da carreira, o samba Se Acaso Você Chegasse (Lupicínio Rodrigues/Felisberto Martins). No lado B do 78, já apontava para um ecletismo estilístico. Gravou uma versão de Alberto Ribeiro, para Mack the Knife, tema da Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weil. Elza Soares chegou ao sucesso com 23 anos, viúva, com quatro filhos (três morreram prematuros), foi mãe aos 14 anos.
Isto é passado, que ela relembra ao batizar seu disco novo (lançado no dia 13 de setembro, por enquanto, apenas nas plataformas digitais), de Planeta Fome (Deck), um disco cujo tema é o Brasil, um país em desequilíbrio. Elza Soares a negra que foi enquadrada na prateleira do samba, desde Do Cóccix Até O Pescoço (Maianga, 2002) engajou-se como ativista contra as desigualdades, abriu-se para novos rumos da música popular, sobretudo o funk e o rap, e trouxe para junto de si a uma nova geração de músicos e produtor, e tornou-se ídolo de uma geração que se sente representada por esta senhora de quase 90 anos.
São tantas as participações que Elza Soares quase se torna convidada especial em seu próprio disco: BaianaSystem, Orkestra Rumpilezz, Virgínia Rodrigues, BNegão, Pedro Loureiro e Rafael Mike. Ela é também creditada como co-produtora com Rafael Ramos do álbum gravado no Estúdio Tambor, no Rio de Janeiro. Doze faixas, selecionadas por ela de pelo menos meia centena de canções que lhe mandaram : “Com muito respeito, muito carinho, os bons se aproximam”, resume as colaborações. Uma das faixas é assinada por ela. No texto de divulgação da gravadora, assinalada como sendo a primeira vez que Elza grava uma música sua: “Já gravei muitas músicas minhas, só que não me vêm como compositora. Só cantora de samba. Não preciso de rótulo, que não sou refrigerante”.
A Elza Soares de 2019 lembra por um instante a Elza Soares de 60 anos atrás. Disseram-lhe que comparecesse ao estúdio da Odeon, no Centro do Rio, às 11h da manhã, para uma sessão de gravação: “Sai procurando a Odeon, acabei no cinema, que estava fechado. Achei que era lá”. Quando finalmente chegou a estúdio da Odeon, atrasada, quase todo mundo tinha ido embora. Acabou gravando com bases criadas para outro cantor. Ela se lembra que estavam no estúdio o pianista Bené Nunes, Lúcio Alves e João Gilberto, que lançou, pela Odeon, naquele mesmo ano o LP Chega de Saudades.
“Tem o Brasil que cheira/outro que fede/o Brasil que dá/é igualzinho ao que pede”, um ijexá, com jeito de marcha-rancho, riffs de guitarra pesadas, que remontam aos bons momentos do Nação Zumbi, e que no final engata um coro em levada de ciranda. A música chama-se Brasis (Gabriel Moura, Jovi Joviânia e Seu Jorge). É este país plural a que Elza Soares recorre ao longo do álbum, o 34º de sua discografia. Sob a batuta de Guilherme Kastrup e Romulo Fróes. Bnegão é a voz Tonitruante em Blá Blá Blá (Pedro Loureiro), alfineta a insistência na aprovação da reforma da previdência, e surpreende com o enxerto da romântica Me Dê Motivo, de Sullivan.
A carne, Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, gravada por Elza em Do Cóccix Até O Pescoço, é revisitada no funk Não Tá Mais de Graça. No refrão da primeira a carne mais barata era a carne negra. “A carne do mercado não tá mais de graça/não tem bala perdida/o seu nome é bala autografada”, canta agora, com participação do autor, Rafael Mike. “Eu me pergunto onde esta porra vai parar?” faz sua a pergunta de todos nós.