Por NATHÁLIA PEREIRA
Quando se invoca a memória coletiva sobre as simbologias que circundam o Morro da Conceição é esperado que, além dos elementos religiosos, manifestações culturais se sobressaiam. Berço de grupos como o Grêmio Recreativo Escola de Samba Galeria do Ritmo e a Quadrilha Junina Tradição, o bairro também é chão firme para movimentações que vão além do Carnaval e festas juninas. O Clube do Samba, por exemplo, completou dez anos em agosto, com cortejo que partiu da sede da Galeria do Ritmo em direção ao Bar da Geralda, abrigo da placa que avisa: “Aqui nasceu o Clube do Samba do Recife”.
Dos muitos nomes que articulam a vida cultural do Morro, um soa unânime entre os moradores. O da filha de Dona Jandira, que trouxe do interior do Estado a devoção por Nossa Senhora da Conceição. “Minha mãe saía em romaria para pagar promessas aqui. Hoje sou parte dessa comunidade e, todos os dias, passo pela imagem e peço proteção”, conta Ana Paula Guedes, comunicadora, musicista, produtora e fundadora do Bloco Obirin, primeiro grupo de samba reggae formado exclusivamente por mulheres no Recife. “O bloco é ferramenta para usar a música e a dança como construção da identidade de empoderamento de mulheres. Mães solo, lésbicas, trans, trabalhadoras, que buscam nele um momento de lazer, integração e fortalecimento”, detalha.
As integrantes se encontram semanalmente em dois momentos. Às terças-feiras, com instruções para quem ainda não sabe manejar os instrumentos, e aos sábados, nos ensaios, na praça do bairro. Tanta dedicação é voltada para a estreia no Carnaval 2020, no qual desfilarão com o tema Mulher, O Útero do Mundo. “Mulher gera, cria, por isso o desenho da árvore como nossa logomarca, um símbolo da força que traz de baixo para cima esse equilíbrio que existe na terra e que, quando recebe sementes, desenvolve bons frutos”, diz Ana Paula.
Além do Obirin, Ana Paula Guedes também está à frente do No Meu Morro Dá Samba, projeto que já na primeira edição, em novembro de 2018, reuniu mais de 700 pessoas na quadra poliesportiva do Morro da Conceição. O evento tem o intuito de reafirmar a resistência do samba popular e integrar mais ainda a comunidade à vida cultural local. A entrada custa 2 kg de alimentos não perecíveis, depois distribuídos a instituições e moradores da comunidade – 160 pessoas receberam os recolhidos na edição de aniversário, no mês passado. A música fica por conta de uma mesa formada pelo Grupo Canto da Madeira e cantores convidados, que se apresentam voluntariamente. “Quando se fala em samba, tende-se a pensar na imagem de um homem. Nosso projeto é desenhado, dirigido, cantado e recepcionado por mim, mulher negra, mãe solo e que adora fazer cultura. Isso me move. Fazer com que as pessoas sejam mexidas pela cultura, não tem preço”, encerra Ana Paula.
Homenageado em 2019 com o Troféu Abebé de Prata Mãe Dadá pelos feitos em prol da cultura afro pernambucana, o percussionista Valdemir Irineu, conhecido como Mestre Pinha Brasil, é outra figura inquieta residente no Morro da Conceição. Foi lá que passou a desenvolver trabalhos de ação social, com foco na prevenção ao envolvimento de crianças e jovens com o tráfico de drogas e a violência. É sob comando dele que o grupo Coco Virado, o Afoxé Omo Inã e o projeto Black na Lata, que utiliza instrumentos fabricados com material reciclado, permanecem ativos durante todo o ano. “O Morro da Conceição é uma árvore imensa onde qualquer parte agitada ‘derruba’ um Gilberto Gil, um Djavan, um Milton Nascimento. É um berço da cultura popular pernambucana. Nos morros existe muita música, muita vida”, analisa o Mestre.
Fora os projetos contínuos, ele encabeça, anualmente, a Sambada Coco no Morro. A desse ano foi realizada ontem, no Bar do Tonho. “A melhor coisa para um artista não é o dinheiro, é o reconhecimento, respeito e carinho da comunidade. O Morro da Conceição é minha base, foi e continua sendo minha escola, um impulso para acreditar na mudança através da juventude”.
De blocos líricos, como o Utopia e Paixão, passando ainda por iniciativas plurais como o Coletivo Quebra Kabeça, o Morro da Conceição tem espaço também para articulações culturais mais recentes, como Os Lobos do Passinho, grupo de dança que é sucesso nas plataformas de vídeo. Em um deles, as coreografias dos garotos para hits do brega–funk acumulam mais de 900 mil visualizações. São prova de que cultura se faz em movimento e a partir de variadas vivências.