Depois de passar quatro anos percorrendo as muitas trilhas, estradas e atalhos pelos quais passou Elis Regina, durante os seus 36 anos de vida, o jornalista paulista Julio Maria, critico de música de O Estado de São Paulo, esbarrou numa encruzilhada: Maria Rita, Pedro Mariano e João Marcelo, os três filhos da cantora. Julio terminara uma biografia de Elis, feita a convite da Editora Master Books, e precisava submeter os originais ao crivo da trinca. “A Master Books me chamou para escrever um perfil simples, para celebrar os 70 anos de Elis”, conta ele. “Então, relendo o Furacão Elis, de Regina Echeverria, decidi que poderia fazer mais do que me pediam. Ganhei carta branca, mas quando estava na conclusão do projeto, a editora resolver seguir os trâmites legais. Topei, mas avisando que, se fosse pedido para fazer alterações no texto, eu não publicaria o livro.”
O dia da morte de Elis Regina, 19 de junho, tem um sentido especial para Julio Maria: é o seu aniversário. “Eu tinha nove anos quando ela morreu, em 1982. Então, cheguei a esta história desarmado, não acompanhei a carreira dela, não escrevi como fã, vi tudo com os olhos descontaminados, de um jornalista que faz sua grande reportagem. Tudo que tem ali são apurações do repórter”, revela. “Por exemplo: fiz procedimentos básicos. Desenterrei o inquérito policial sobre a morte de Elis. Estão ali todos os fatos, declarações das pessoas envolvidas.”
Elogiado, o livro já vem sendo chamado de biografia definitiva de Elis Regina. “O que é uma biografia definitiva?”, pergunta Julio Maria. “Às vezes, uma biografia tem detalhes demais, nem todos relevantes. Uma atitude de ego do autor, que coloca no livro tudo o que pesquisou em jornais – é tanta informação que cria um ruído na leitura.” E conclui: “Acho que a biografia definitiva é aquela que consegue traçar o perfil pessoal, profissional e psicológico do biografado. E acho que fiz isso. Mas uma biografia nunca é definitiva, nem está completa.” Para o autor, mesmo depois de mortas, as pessoas podem gerar fatos. “Um exemplo é a vitória da Viradouro agora no Carnaval. A vitória foi de Elis, uma cantora que nunca chegou a ser tão popular para lotar estádios, agora monopolizou a atenção de milhares de pessoas na avenida. Pode-se muito bem incluir este fato em outra biografia de Eliis.
BIOGRAFIA
Furacão Elis, a primeira biografia importante de Elis Regina, foi recebida com polêmica. Fãs se irritaram, parte da crítica a considerou sensacionalista. Nada será como antes foi escrita com distanciamento jornalístico. Julio Maria narra os fatos, sem opinar sobre eles. Como numa reportagem investigativa, não se limitou a falar com personagens principais: os filhos, o ex-marido César Camargo Mariano, o namorado da cantora na época, o advogado Samuel Mc Dowell. Ele foi aos músicos, por exemplo, e descobriu que Elis mantinha um relacionamento estreito e intenso com eles. Tão intenso que teve envolvimento com alguns, mesmo quando casada. Puxou pela memória dos filhos: João Marcelo, com 11 anos em 1982, conta que caiu a ficha, que foi apreendendo a realidade, quando passou por um parque de diversões, em São Paulo, e pediu a ao motorista, que dirigia o automóvel da família, para leva-lo lá qualquer dia. O motorista disse ao garoto que não levava nem o filho dele, por que iria levá-lo? O filho de Elis começou a constatar que tudo no seu mundo girava, até então, em torno de sua mãe. E que, a partir dali, estava sozinho.
Tem a Elis que vivia intensamente, mudava de ideia, fazia amizades, e atraía inimigos. A idealizadora de uma marcha contra a guitarra elétrica (contra o iê-iê-iê, na verdade), que três anos mais tarde cantaria com Roberto Carlos e responderia a um repórter, que a cobrava pela incoerência com: “Mudei de opinião”.
Nada será como antes talvez não seja a biografia definitiva de Elis, mas é difícil que alguém escreva outra tão abrangente. Julio Maria dedica quatro páginas ao “episódio Cajá”, durante a passagem do show Transversal do tempo pelo Recife, em 1978 – e que coincidiu com a prisão do líder estudantil Edval Nunes da Silva, o Cajá, (ligado a D. Hélder Câmara), sequestrado, preso e torturado nas dependências da Polícia Federal.
Cajá virou símbolo na luta contra a ditadura militar: “Quando chegou ao Recife, Elis já sabia da prisão de Cajá, tinha informações da tortura que sofria, e dedicou a ele seu primeiro show no Santa Isabel. A plateia vibrou ao ouvir o nome do estudante, lembrado pela cantora que vinha justamente com o combativo Transversal do tempo. A Polícia Federal ameaçou acabar com a festa e avisou que se o nome do preso voltasse a ser mencionado, a próxima apresentação seria cancelada”. Elis participou de uma missa celebrada por Hélder Câmara pela libertação de Cajá, tentou visitá-lo, mas foi impedida pela polícia. No segundo show, fingindo procurar um dos músicos falou alto: “E você, o que está fazendo aí? Vem cá, já!”. Grande parte do público percebeu o ‘Cajá’ e aplaudiu. Impossibilitada de visitar o preso, Elis escreveu-lhe uma carta, entregue a sua amiga, a hoje secretária de cultura municipal Leva Alves, que passou-a à noiva de Cajá. A carta é transcrita na biografia.
Outra carta faz parte da história. Quando João Marcelo completou 1 ano, Elis escreveu um carta para ele, que só deveria ser lida quando o filho chegasse aos 18. A carta permaneceu com uma amiga de Elis, e só agora João recebeu-a. Nada será como antes traz para suas páginas Elis como ela foi: contraditória, temperamental, de muitos amores, e que viveu a vida com paixão, entrando e saindo de todas, dando a cara ao tapa, e sem vergonha de reconhecer os erros, mesmo que os repetisse.