A Nave de Odé, segundo disco do cantor e multi-instrumentista paulista Caê Rolfsen, é sobre a invenção de um lugar particular. Reprocessando e condensando levadas de reggae, dub e afrobeat, elementos de samba baiano e música pop angolana e timbres de soul, a música inventa um entrelugar fantástico que habita e sintetiza África Ocidental, Brasil e Jamaica.
“Esse disco surgiu espontaneamente quando eu compus duas canções: O Caçador e a Flecha e Lado Místico”, conta Caê. “A imagem da nave de Odé apareceu nas letras como uma representação daquilo que pode ser uma ponte estabelecendo uma comunicação mais sutil e espiritual entre o ser humano e as forças místicas da natureza e do cosmos – um vetor entre a terra e o céu e o mistério que há além da nossa vida mundana. O orixá Oxóssi (Odé, “caçador” em yorubá) representa essa conexão de religação entre o ser humano, a natureza e a conscientização que faz com que nos entendamos como uma parte dessa natureza”, explica ele. “Acredito muito na importância dessa conscientização para evoluirmos como seres humanos. Assim como também acredito na importância da música para esta construção de uma consciência humana mais sensível. Por isso resolvi juntar estas duas coisas num disco só”, completa.
Pela capa e no conceito do disco, A Nave de Odé remete imediatamente ao afrofuturismo de artistas como o músico e “filósofo cósmico” Sun Ra – “space is the place”, dizia sua máxima. “Umas das minhas intenções era tentar trazer elementos documentais da cultura e da tradição da mitologia dos orixás para um universo fantástico da ficção e da ficcão científica, tentando desconstruir as barreiras entre esses gêneros. Acho que a sugestão do diálogo com o afrofuturismo vem mais por esse sentido da imagem ficcional fantasiosa de um orixá que retorna do futuro para o presente numa nave para combater a maldade e as injustiças cometidas contra a humanidade do que por uma influência diretamente musical ou estética daquele movimento”, analisa Caê.
Em Estação Sé (2012), seu primeiro álbum, Caê Rolfsen apresentava uma crônica de desencontros no cotidiano caótico das metrópoles. A sonoridade era centrada em ricos e delicados arranjos de cordas (cello, violino, violão e ronroco), mas já demostrava alguns rastros de música africana – especialmente na poliritima do violão de No Tambor de Crioula e Linda. Agora, com participações de músicos do Metá Metá – Thiago França (sax, flauta e ewi), Juçara Marçal (voz em Zambê) e Sergito Machado (bateria) – e sua própria maturação, o músico desenvolve as sementes plantadas anteriormente e potencializa as referências afro internalizadas.
“O diálogo com outros músicos como o Metá Metá me instiga e me estimula a criar e pensar minha música sempre de uma maneira nova. Mas esse meu lance mais intimamente ligado à música afro-brasileira e jamaicana, como instrumentista e compositor, já vem desde minha adolescência através do meu gosto pelo violão polirítmico de caras como Baden Powell, Gilberto Gil e Vicente Barreto e as melodias de compositores jamaicanos como Alton Ellis, Cedric Im Brooks e Bob Marley”, observa Caê.
A Nave de Odé é resultado do contato com colegas da música brasileira contemporânea (entre eles, o pernambucano Caçapa, que assina uma apresentação do álbum no site do cantor) e também de um trabalho de auto-conhecimento, de mergulho interior.
“Essa transição aconteceu naturalmente como uma continuidade do meu processo de composição, que foi um caminho de reencontro com os sons da minha adolescência: os discos de reggae que o meu irmão levava pra nossa casa, as rodas de samba que eu sempre frequentei em Araraquara (minha cidade natal) e a guitarra, que foi meu primeiro instrumento. Há momentos em que precisamos silenciar e escutar dentro da gente a nossa música mais intuitiva, que nasce do silêncio e do inconsciente. A Nave de Odé fez parte desse processo para mim”, conclui.
CANÇÃO
A Nave de Odé mostra um trabalho precioso no quesito de produção e formato canção. Além de músico e instrumentista, Caê Rolfsen participa como arranjador e produtor. O Caçador e a Flecha, por exemplo, é guiada por uma programação eletrônica e guitarra, mas é recheada por vários detalhes que dão maior força à faixa. Mostrando influências de Beto Villares, ele cria um som colorido, polido, mínimo e com pegada pop.
Cecília do Cambuci destaca a narrativa lírica jogando com imagens-cenas – Caê diz ser “como uma fotografia ou um curta metragem-canção”. A faixa parte de uma personagem documental, Cecília, uma manifestante das ocupações das escolas públicas em São Paulo, e mescla-se com o ficcional.
Já Serrinha, Congo e Kingston é a imagem símbolo do entrelugar desenhado pela mistura de ritmos do CD. “No final, vi o quanto a música sintetizou os caminhos percorridos pelo disco, sendo um dos pontos musicais do álbum em que as fronteiras entre os gêneros vão se apagando e as classificações começam a se confundir e fugir às regras”, relata Caê. “Ela simboliza este lugar imaginário – da paisagem dos canaviais de Araraquara, da cultura de rua do samba e do reggae – mas que também são lugares geográficos ligados a diáspora africana e a expressão da sua cultura”.