Telúrica, cósmica, estratosférica. Inclassificável. Elke Maravilha, criadora e criatura de si mesma, habita um lugar especial no imaginário coletivo, fruto do seu carisma inconfundível e da liberdade avassaladora que representava. Era um ser de adjetivos superlativos. Sua morte, aos 71 anos, na madrugada de ontem, em decorrência de complicações após uma cirurgia para tratar uma úlcera, pegou a todos de surpresa. Porque Elke parecia infinita e seu valor para a cultura brasileira, injustamente subvalorizado.
Internada há quase dois meses na Casa de Saúde Pinheiro Machado, no Rio de Janeiro, por conta da úlcera que há décadas prejudicava sua saúde, Elke apresentou uma leve melhora, chegando a ser transferida para o quarto, mas pouco tempo depois voltou à UTI. Durante este breve momento de recuperação, no entanto, a multiartista aproveitou para se despedir de alguns amigos queridos como o músico Adriano Salhab.
“Nesses últimos instantes de lucidez, antes de voltar para o coma induzido, Elke me ligou para se despedir. Ela já sabia que estava indo, mas fez tudo isso com leveza, como era característica sua. Ela era uma pessoa sempre à frente, iconoclasta. Para mim, ela e Zé Celso são atemporais, futuristas. No entanto, Elke tinha algo ainda mais especial, único: uma generosidade sem tamanho”, relembra o artista.
Leveza e alegria, inclusive, eram traços marcantes da mulher do mundo todo e de lugar nenhum. Nascida na Rússia, em 1945 e batizada como Elke Georgievna Grunnupp, imigrou com a família para o Brasil, ainda criança, fugindo do regime stalinista. Naturalizou-se brasileira e estabeleceu-se com a família em um sítio em Itabira, interior de Minas Gerais, onde viveu até o início da vida adulta. Antes dos 20 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro, já falava oito idiomas: russo, português, alemão, italiano, espanhol, francês, inglês, grego e latim.
Seu porte – media 1,80 metro – e beleza alavancaram a carreira de modelo, tornando-a musa de estilistas como Zuzu Angel, sua grande amiga. Em um protesto contra o assassinato de Stuart Angel, filho de Zuzu, pela Ditadura Militar, Elke foi presa e posteriormente perdeu sua cidadania brasileira. Tornou-se apátrida. Anos depois, tornou-se, como sua mãe, cidadã alemã. Após a queda do regime militar no País, não quis pedir anistia, pois considerou que seria a admissão de uma culpabilidade que sabia não ter.
Ganhou fama nacional como jurada de programas de calouros de Chacrinha (“o céu”) e Silvio Santos (“o inferno”). Sempre exageradamente maquiada, com perucas enormes e roupas vibrantes, era conhecida por seu sorriso largo, senso de humor afiado e gentileza. Dificilmente dava uma nota baixa. Classificar os outros parecia lhe interessar menos do que elevar aqueles ao seu redor.
Sua figura instigava interrogações, feito tão raro ainda hoje. Homem, mulher, o terceiro, quarto sexo. Elke vinha para confundir, questionar, lembrar que a vida pode, sim, ser leve. Que amar é mais fácil quando se vê o outro com amor e cuidado. Atuou em 10 peças, cerca de 30 filmes, como Pixote, a Lei do Mais Fraco, e fez inúmeras participações em novelas e programas de TV. Casou oito vezes, abortou três vezes (“Sem a menor culpa”), não quis ter filhos e provavelmente partiu leve, pois seu legado foi a construção de si mesma.
“Elke era o Cassino do Chacrinha, nossa televisão, nosso Carnaval. Talvez a pessoa com maior empatia pela diversidade, pela nossa gente”, afirma Maria do Céu, cuja boate Metrópole sediou uma das últimas apresentações da artista no Recife.