“Hineni” é uma expressão hebraica que pode ser traduzida, grosso modo, por “Eis-me aqui”, proferida quando o Deus convoca um servo para uma tarefa difícil. Foi o que Lhe disse Abraão quando Ele lhe pediu para sacrificar Isaac, seu único filho. “Hineni, hineni, i’m ready, My Lord” é o refrão de You Want it Darker, canção do disco homônimo de Leonard Cohen batizou, lançado no final de outubro. A canção tem backing vocal de Shaar Hashomayim, cantor da sinagoga frequentada por ele e sua família Montreal, no Canadá. Em uma longa e confessional conversa, com o jornalista David Henmrick, traça um perfil do artista, desde sua juventude, entremeado de comentários de Leonard Cohen que, nos derradeiros parágrafos fala da morte como se Deus estivesse lhe sugerindo o supremo sacrifício.
Ele cantou um trecho de uma música incompleta ao jornalista e comentou: “Acho que não vou ter tempo de terminar estas canções. A esta altura do campeonato, eu ouço uma voz me dizendo, Leonard apresse-se com estas coisas que você está fazendo”. Ele revela que está doente, muito fraco: “Leonard, você está perdendo muito peso, mas não precisa cooperar com tanto entusiasmo com o processo. Coma um sanduíche”, exercita o humor negro. Não foi divulgada a causa da morte de Cohen, que também tinha graves problemas de coluna, mas ele ficou ainda mais abatido depois da morte da norueguesa Marianne Ihlen, dois meses antes de lançar You Want it Darker. So long, Marianne, é uma das faixas do álbum de estreia de Leonard Cohen, de 1968.
Embora separados há muitos anos, os dois continuavam amigos, se comunicavam por telefone ou e-mail. Conheceram-se na ilha grega, de Hydra, onde Leonard Cohen morou nos anos 60, pouco antes de se tornar gravar o primeiro álbum. Seu último e-mail para Marianne foi postado nas redes sociais, um amigo pediu sua autorização e ele acedeu: “Pois é, Marianne, chegou o tempo em que ficamos realmente velhos e nossos corpos estão deixando de funcionar, e acho que logo lhe seguirei. Saiba que estou bem atrás de você, se você estirar a mão alcançará a minha. Você sabe que te amei pela sua beleza e pela sua sabedoria, embora não precise mais dizer isto a você, que sabe muito bem disto. Mas quero te desejar uma ótima viagem. Adeus velha amiga. Amor eterno, nos encontramos lá no fim da estrada”
MALDITO
Leonard Cohen tinha livros publicados desde 1956. Ao longo de dez anos foi um dos escritores mais incensados do Canadá. em 1966, publicou seu livro mais badalado, e polêmico, Beautiful Losers, que lhe valeu comparações com James Joyce e Henry Miller. Ao mesmo tempo afastou dele os livreiros, que se recusavam a vendê-lo em suas livrarias. Foi Publicado também nos EUA, mas poucos o compraram (entre os poucos estava um jovem músico chamado Lou Reed). As resenhas nos jornais definiam o livro como “o livro mais revoltante já publicado no Canadá”, ou “uma masturbação verbal”. Leonard Cohen jogou suas fichas em Beautiful Losers, o via como um best-seller, mas se deparou ante um fracasso comercial. O epíteto de autor maldito não é bom para a conta bancária.
Não exatamente um exemplo de romântico, nem ingênuo, para Leonard Cohen ars gratias ars (“arte pelo amor à arte”) não funcionava na vida real. Dinheiro era necessário para a pagar as contas. Se não dava com literatura, ele tentaria com música. Em 2004 ele se viu na mesma encruzilhada. Depois de mais dez anos envolvido com o zen budismo, de ter se tornado monge, Leonard Cohen descobriu que estava falido, tinha sido ludibriado pelo por seu empresário. Tinha contas para pagar. Ele foi à justiça, que condenou o empresário a lhe indenizar em cinco milhões de dólares
Desde os anos 50, ele cantava e usava o violão em seus saraus literários: ““Não há diferença entre um poema e uma canção. Alguns nasceram canções primeiro, e outros primeiro poemas. Em tudo o que escrevi tem guitarra por trás, mesmo os romances”, comentou em 1969, numa entrevista ao New York Times. Já em 1958, ele declamava com música de fundo, o que era comum. Jack Kerouac gravou alguns discos, um deles e haicai com os jazzmen Zoot Sims e Al Cohn. Nessas gravações de Cohen em 1958, ele toca violão, e faz uma jam session com um grupo canadense, Stormy Clovers. Em 1966, ele aterrisou numa Nova Iorque, que vivia ainda a efervescência dos pequenos bares e clubes do Village, e as experiências de vanguarda, no East Village, no Dom, onde a banda da casa era a Velvet Underground.
Um amiga o apresentou a cantora Judy Collins, que gravou duas canções dele. Foi tudo muito rápido. Cohen foi contratado para a CBS por John Hammond, o produtor que descobriu entre outros, Bob Dylan, Billie Holiday, Bruce Springsteen, Aretha Franklin. Hammond o contatou depois de ouvir uma demo, que Leonard Cohen gravou no seu quarto no hotel Chelsea. O disco Songs of Leonard Cohen chegou as lojas no alvorecer do Verão do Amor, de 1967, a Era de Aquarius, da qual Cohen destoava completamente. Usava ternos bem cortados, cabelos curtos, e sua música era um misto de chanson francesa, com jazz e blues, em suas letras requintadas e elegantes. Dai em diante ele passaria a pagar as contas com música. Na citada matéria da The New Yorker, o repórter perguntou a Bob Dylan qual sua música preferida de Leonard Cohen, a resposta: “Todas”.