O nome da nova coletânea de quadrinhos e desenhos da cartunista Laerte Coutinho, Modelo Vivo (Boitempo, 88 páginas), faz referência a um exercício tradicional de artistas plásticos: desenhar a partir da pose de uma pessoa. O título não é por acaso: na obra, entre histórias antigas e tirinhas mais recentes, estão ilustrações que não narram nada – revelam apenas a própria fluidez dos corpos e do traço de Laerte. É um tanto sintomático que boa parte das obras do volume, mesmo as feitas na década de 1980, tragam um genuíno interesse pelo corpo, pelo gênero e pelos deslocamentos possíveis (ou necessários) entre eles. Dos modelos vivos, passando pelo homem que vira uma motocicleta, e até o casal que troca de rosto para matar o tempo em uma ilha deserta, a arte da autora parece ver o corpo como o terreno das transformações, da busca pelo prazer, de encontrar e reencontrar o próprio traço.
Uma das principais quadrinistas do País, Laerte tem uma trajetória celebrada nos seus diferentes momentos. Começou na mídia alternativa, com cartuns em jornais sindicais e no Pasquim. Depois, foi um dos nomes à frente da Circo Editorial, de revistas como Chiclete com Banana e Piratas do Tietê. Na Folha de S. Paulo desde então, Laerte tem se dedicado a produzir tiras diárias, com criações inesquecíveis como Overman, Gato e Gata, Deus e Fagundes, o maior puxa-saco do mundo. No entanto, há mais de uma década, começou a deixar os personagens de lado, abdicou da obrigação de ser sempre cômico e passou a experimentar outros caminhos e traços nas suas tiras diárias.
Muitos leitores estranharam e reclamaram disso; outros (incluindo críticos e colegas quadrinistas) viram ali uma das produções em quadrinhos mais importantes dos últimos tempos. Laerte já era um dos principais nomes das HQs brasileiras pelo que havia feito: a guinada a tornou uma das artistas mais relevantes e provocantes do período atual. Além disso, em 2010, chamou atenção ao revelar a sua transgeneridade – primeiro, se vestindo como mulher, depois, se referindo a si mesma como mulher – e passou a militar na questão.
A guinada na vida de Laerte até chegou a ofuscar um pouco a originalidade da sua produção. Em Modelo Vivo, primeiro livro da autora em seis anos, é possível ver um pouco de várias dessas Laertes. “São desenhos de períodos diversos, mas acho que há um padrão. O dado novo são os desenhos de modelo, que não correspondem a histórias ou roteiros. Quis incluir duas páginas inéditas, por serem inéditas; e uma história dos Palhaços Mudos, que quase ninguém viu porque saiu num fanzine pouco divulgado”, comenta Laerte, em entrevista por e-mail. A organização do volume foi feita junto com Toninho Mendes.
Na apresentação da obra, a autora explica que, ao contrário do que se pensa, desenhar não se torna mais fácil com o tempo. “Talvez seja só coisa minha – mas tenho tido cada vez menos prazer e mais dificuldade com o desenho. É meio duro de dizer e de ouvir, e sinto que preciso afinar a ideia: a expressão ‘menos prazer’ não quer dizer ‘desprazer’”, escreve. Não é um desânimo, como faz questão de ressaltar na entrevista. “Parei de usar o traço ‘cômico’ que usava, assim como os roteiros mais dentro do campo da comédia, porque me pareceram pertencer a um ciclo que já não fazia sentido pessoalmente”, explica.
Assim, desenhar pessoas nas aulas de quadrinhos que ministrou com o seu filho, o também artista Rafael Coutinho (autor de Cachalote e O Beijo Adolescente), foi a forma de buscar essa espécie de “refundação” do traço. “As buscas que me orientaram a partir daí – e que me orientam até agora – têm relação com práticas como desenho de modelo vivo, que eu já fiz em várias ocasiões, mas nunca tinha publicado”, continua.
As tirinhas do volume brincam também com esses momentos. Em uma delas, uma modelo nua dialoga com um artista. “Que linda eu estou aqui!”. “Isso não é você – é um desenho”, ele responde. Olhando outro papel, a modelo se vinga: “Esse desenho tá feio”. “Não é um desenho – é você”, protesta o artista.
O corpo tem sido um ponto de reflexão, experiência e transformação para Laerte. Não só porque ela passou a militar sobre a transgeneridade, mas porque levou o tema para os seus quadrinhos (a única personagem que manteve, por um tempo, foi Muriel, que se vestia de mulher) e foi modelo da exposição Adágio, do fotógrafo Rafael Roncato. Mais do que o trânsito entre gêneros, as possibilidades do corpo parecem interessar a quadrinista na sua criação – e não é de agora. As histórias antigas de Modelo Vivo elencam isso: uma é sobre um Minotauro, essa junção de homem e touro; em outra, um homem tem um rosto humano em uma sociedade em que todos tem um polegar em cima dos ombros; em Penas, transformada em curta-metragem por Paulinho Caruso, uma pessoa descobre que estão nascendo penas nos seus braços.
“Verdade, tenho feito várias viagens à roda do meu corpo, como Xavier de Maistre (escritor francês) à roda do quarto dele. Reflexões, mergulhos e aprofundamentos que renovam o olhar que temos sobre o mundo. Não sei falar muito mais do que isso, infelizmente!”, comenta a cartunista.
Além disso, Modelo Vivo terminou saindo antes da coletânea, agendada há um bom tempo, que reuniria as tirinhas da produção recente de Laerte para a Folha de S. Paulo. O volume é muito aguardado: seria uma visão mais ampla da obra singular – altamente experimental, irônica, sem atalhos e, muitas vezes, simplesmente brilhante – que a autora vem construindo nesse tempo.
“O livro das tiras ‘novas’ vai sair, sim, agora em 2017”, explica a quadrinista. “Você me pergunta se elas têm poder – não tenho como dizer... Vou fazendo meu trabalho sem uma consciência muito nítida do poder que ele tenha ou possa representar. Pra mim, o poder do trabalho se realiza no momento em que é feito, aqui comigo mesma.”
Laerte, por sinal, é parte de uma geração – ao lado de nomes como Angeli, Glauco e Luiz Gê – que começou em zines e na imprensa alternativa, criou as próprias publicações, passou para grandes veículos de imprensa e se tornou referência nos quadrinhos, sem nunca perder a verve própria. Se os jornais impressos já foram um palco ilustre para revelar e consagrar autores, hoje a internet e as feiras de publicações independentes parecem disputar esse papel.
Para a autora, os quadrinistas iniciantes de hoje talvez tenham acesso a mais caminhos. “Acho que sim. Espero que sim. Pelo que tenho visto, sim. O modo como os trabalhos vêm à luz mudou bastante, tornou-se mais tecnológico, mais complexo, mais rico – e, talvez, mais democrático”, pondera a cartunista. “Existem mais autores e autoras se apresentando. Principalmente autoras.”
Nas redes sociais, Laerte tem sempre se posicionado politicamente contra os ataques às minorias e em defesa de pautas progressistas. O cenário adverso das esquerdas no mundo, para ela, tem movimentos parecidos, “mas são fenômenos diferentes os que propiciaram o golpe do impeachment, a eleição de Dória ou Crivella e a vitória de Trump”. “Nossas reflexões e análises têm muito o que refletir, mas me parece que o mundo, hoje, não tem muito como recuar. A pasta que já saiu do tubo não volta pra dentro”, opina. “E, sim, o humor e o desenho podem ajudar nisso. Ou atrapalhar. Espero que ajudem!”.